O ESPAÇO DO COTIDIANO | Grupo 05

            “Faça de cada coisa um lugar, faça de cada casa e de cada cidade uma porção de lugares, pois uma casa é uma cidade minúscula e uma cidade é uma casa enorme” 

Aldo Van Eyck, 1962

caixa de areia

As crianças sentem-se mais à vontade para construir seus castelos de areia em tanques menores. O perímetro reduzido, diferente das áreas mais amplas, não necessita da supervisão constante de um adulto, serve melhor às configurações de trios e duplas e diminui as possibilidades de uma criança mais bagunceira atrapalhar o jogo. Ao se deparar com um espaço delimitado, facilmente apreensível, a criatividade encontra um terreno mais fértil para agir. É o que ensina o arquiteto Herman Hertzberger, ao falar de sua estratégia de projeto na Escola Montessori, em Delft: “O espaço deve sempre ser articulado para criar lugares, unidades espaciais cujas dimensões e níveis de demarcação possam torná-la capazes de acomodar o padrão de relações dos que vão usá-las”.

O mundo é grande demais para habitarmos de uma só vez. Resta-nos estabelecer pequenos espaços, onde, com mais ou menos desenvoltura, construímos nossas moradas e nos apropriamos do meio. O sentido de morar está ligado ao de conhecer e compreender. E assim nos cercamos de objetos e situações familiares, com uma escala compatível com o nosso tamanho e nossas possibilidades de intervenção. Morar e habitar não se restringem aqui aos espaços domésticos. Habitamos a cidade e suas praças, as escolas e os escritórios, e para isso construímos, porque só é possível habitar o construído. O filósofo alemão Heidegger utiliza o vocábulo bauen, que quer dizer, ao mesmo tempo, habitar e construir. Construir, portanto, é habitar, na medida em que se estabelece um contato profundo com o meio e com o outro.

Entendendo que as habitações extrapolam as necessidades domésticas e a sua realização não está sujeita ao espaço da casa, parece interessante a investigação de articulações espaciais mais ricas, que proponham outro padrão de relações. Para isso, precisamos entender o que torna um espaço construído um espaço habitado de forma plena e que ferramentas de projeto podem potencializar esse processo. Também se faz necessário observar como se dá a interface entre esses espaços familiares e o resto da cidade e propor maneiras de tencionar essas relações.

Em um primeiro momento, nos debruçamos sobre nossas casas, decompondo nossa maneira de atuar no espaço em verbos específicos. O próximo passo será examinar de perto o prédio da Escola da Cidade, lugar em que temos uma experiência comum, e que vai funcionar como laboratório empírico nessa fase do trabalho. As conclusões e novos questionamentos irão apontar os rumos seguintes.

 

fogueira

 

Examinamos, em seguida, de perto o prédio da Escola da Cidade, lugar em que temos uma experiência comum, e que funcionou como laboratório empírico nessa fase do trabalho. Nossa análise segue uma metodologia semelhante à da primeira etapa. Observamos em planta o cruzamento das características espaciais do lugar com os verbos, que traduzem de forma sintética o uso de cada ambiente. Além da função que cada espaço desempenha, nos interessa observar a apropriação feita pelos que lá habitam. De maneira irregular, muitas vezes improvisada e extraoficial, pequenas intervenções se sobrepõe às camadas existentes, e essa matéria revela muito sobre as relações que se estabelecem no lugar e com o lugar. Mapeamos esses dispositivos espontâneos por meio de fotografia. São bons exemplos os canecários dos estúdios, construídos pelos alunos, o vaso de planta na varanda do segundo andar, a mesa de venda de lanches e doces estabelecida de maneira espontânea no térreo, e a gigantesca faixa vermelha estendida na fachada do prédio com os dizeres Fora Temer.

Com a mesma lógica, analisamos também o território imediato no qual a Escola se insere e como transitamos e ocupamos o entorno. A leitura da frequência em lojas, cafés e restaurantes, novamente atrelados aos verbos, mostra qual é o perímetro de nosso habitar, que extrapola o prédio da faculdade e envereda para a cidade, como manchas que se diluem aos poucos.

 

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Depois de estabelecida essa análise, observamos que ocupar de maneira cotidiana e intervir no espaço, sozinhos, não bastam para que o habitar se realize em toda a sua potência. Para Heidegger, é preciso resguardar o equilíbrio de uma quadratura: a terra e o céu, os mortais e os deuses. Só desenvolvemos plenamente o habitar, ao construirmos nesse sentido. Em suas palavras: “Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente o habitar”. Sobre a cidade, o filósofo diz que o habitar metropolitano é cindido, mais da ausência do que da presença, e onde a poesia e o dizer vivificante não se constrói no cotidiano.

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terra                 mortais                     céu                                  deuses

Com isso em mente, partimos para uma experiência de projeto que, de alguma maneira, pensasse o habitar. Realizamos quatro pequenas intervenções no decorrer de uma semana, sempre com algum aspecto da quadratura de Heidegger em evidência. Uma rede coletora de amoras, explorando a relação com a terra e seus frutos; uma escada possibilitando o acesso à cobertura do centro acadêmico, espaço sujeito às interferências e fenômenos do céu; uma fogueira, situação simbólica da finitude da matéria e espaço de reunião entre os mortais; e uma cadeira de praia, colocada no topo do prédio e transformada em um mirante, lugar de introspecção e reflexão sobre a dimensão do mundo.

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A materialidade frágil e efêmera foi na direção das intervenções espontâneas mapeadas anteriormente. A simplicidade e informalidade desses dispositivos também agilizou o processo construtivo e estimulou a apropriação por outros alunos e funcionários, sem ligação com esse trabalho. A rede coletora de amoras, por exemplo, se apoia em uma estrutura pré-existente e inacabada. A fogueira re-edita uma experiência anterior, realizada por outro grupo de alunos, com outra intenção. Ambas ocupações da cobertura provocam, imediatamente, questionamentos sobre a restrição do uso desses espaços.

 

“A experiência metropolitana é uma experiência que se dá/faz não no habitar na poesia, mas na desabitação; desolação que de alguma forma constitui a raiz da condição metropolitana (…) o habitar metropolitano é cindido, diversificado, da ausência, mais do que da presença e onde a poesia e o dizer vivificante é fundante, não é algo que se constrói no cotidiano. O que desenha o contorno do homem contemporâneo é a experiência da ausência.”
– Martin Heideggermapa4

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Na etapa final do trabalho, nossa caixa de areia se alargou e nossos ensaios projetuais ganharam uma dimensão urbana. A partir do mapeamento do território da Escola, procuramos lugares que se articulassem com os conceitos da quadratura. O que encontramos foi a falta. E foi nessa chave que intervimos, evidenciando essa falta. Massimo Cacciari discute o conceito heideggeriano: “o habitar metropolitano é cindido, diversificado, da ausência mais do que da presença e onde a poesia não é algo que se constrói no cotidiano. O que desenha o contorno do homem contemporâneo é a experiência da ausência”.

Nos arredores da Escola, a terra aparece só como suporte do construído. Impermeabilizada, coberta de concreto. Nos momentos em que fica à mostra, é batida, dura, quase estanque. Para a intervenção, escolhemos um trecho da Rua Bento Freitas, próximo à esquina da Major Sertório, onde não há arborização e a calçada inóspita serve apenas como passagem. Usando apenas materiais naturais, bambu, terra de formigueiro, esterco, água e sizal, construímos um cubo de pau-a-pique com 40 cm de lado. O interior foi preenchido com terra fértil.

Para o céu, escolhemos a saída do metrô, o momento em que nos damos conta da ausência do céu. Subindo a escada rolante, o olhar é direcionado naturalmente para cima. No momento em que a subida termina, olhamos quase que automaticamente para baixo. E foi nesse instante em que colocamos a segunda intervenção. Uma série de cinco espelhos quadrados com 80 cm de lado foi espalhada nesse percurso de saída, na Praça da República.

Os mortais caminham o tempo todo pela cidade mas o encontro acontece de forma truncada e principalmente dentro dos espaços. Escolhemos a Praça Dom Penteado, espaço quase residual entre a Rua Araújo e a Av. Ipiranga, em frente a casa noturna Love Story. A falta de mobiliários e outros dispositivos faz com que ela seja pouco frequentada. Para a intervenção, colocamos uma mesa de refeições no meio da praça, convidando ao encontro e à reunião.

Aguardar os deuses também não é uma tarefa fácil no ambiente metropolitano, e se tem um lugar em que eles não estão é no minhocão, viaduto aéreo que corta a cidade numa função infraestrutural. Para representar a dimensão espiritual, usamos o som. O objeto construído foi um sino de vento, feito com tubos de ferro, cabos de aço e aros de bicicleta. O vento, a trepidação do viaduto e as pessoas que passam mexem o objeto, que revela um som metálico delicado se comparado ao barulho constante da cidade.

Antes das ações, fizemos imagens de estudo dos conceitos, mas a materialidade foi desenvolvida de forma mais espontânea. Para o cubo de terra, usamos uma técnica tradicional, que aprendemos conversando com um trabalhador rural. Os espelhos, feitos de uma película fina de alumínio e uma base de plástico, foram encontrados em um ferro-velho e deram outra escala para a intervenção, originalmente pensada com espelhos pequenos de banheiro. O sino também foi pensado no ferro-velho, com base nos materiais que encontramos. A mesa foi um achado em um site de venda de móveis usados.

Com os objetos adquiridos e pré-construídos, fomos a rua para a instalação e captação das imagens. Como algumas instalações seriam muito efêmeras, foi fundamental o registro desses momentos em vídeo. A mesa foi roubada durante a noite e o cubo foi apropriado. No dia seguinte, havia uma muda de árvore plantada lá.

Diferente do interior da Escola, o espaço público está aberto ao imprevisível com mais força. A frequência de atores e interesses diversos e conflitantes enriqueceu a experiência. O que chamou mais atenção foi o cubo de barro, que foi feito na própria calçada. Várias pessoas pararam para perguntar o que era e se ficaria lá, animadas com a perspectiva de um vaso novo ou curiosas com o sistema construtivo tradicional.

A dimensão poética das intervenções aparece no vídeo. Se a experiência da metrópole é de desabitação, esses momentos de apropriação são uma forma de resistência e de encontro. Com esses ensaios despretensiosos não nos propusemos a resolver nenhuma questão objetiva ou existencial da cidade, mas experimentar vocabulários e ferramentas, tanto de discurso como de técnicas construtivas, que desenvolvemos durante o nosso estudo.

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APRESENTAÇÃO