– + | Grupo 28

1ª Etapa

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O que é um espaço público? Como ele é caracterizado e por quem?
A partir de definições (ou indefinições) de como hoje o espaço público é constituído dentro do contexto cidade e de como a cidade é inserida na paisagem, um grande campo de discussões é aberto para entender as relações entre esses conceitos e instigar possíveis intervenções em pré-existências gerando, inclusive, indagações sobre o papel do arquiteto que permeia por todos esses pontos. Para embasar ainda mais a discussão, traçaremos um paralelo entre São Paulo e a cidade de Medellín, na Colômbia.
Para isso, partimos da análise de algumas situações hoje existentes nas cidades que, de certa forma, possuem maior apropriação dos usuários e outras que nem tanto, propondo a compreensão do porquê. Esses espaços são melhores aproveitados pela intervenção de quem? Foi o arquiteto ou a apropriação do público que deram um significado àquele lugar? Nesses espaços estão presentes, tanto uma dimensão física, quanto uma subjetiva, e é a intersecção delas que dá ao lugar um significado e um uso.
Vários são os fatores que interferem na qualidade de um espaço público e, certamente, um grande peso é dado à gestão pública. Como a gestão pública interfere no desenho desse espaço e como esse interfere na formação do usuário? A legislação interfere fortemente nesse desenho e grande parte de exemplos bem sucedidos dos espaços se deram pelas “frestas” da lei. Mas e se, de repente, muitas dessas leis fossem subvertidas? Teríamos espaços com outra qualidade, com outro significado? Com outro uso?
A partir da catalogação para compreensão geral dos fatores de produção desses espaços o grupo pretende gerar um instrumento prático de análise dessa concepção e chegar, oportunamente, nas respostas para essas perguntas, além de uma intervenção no espaço público existente para comprovar de maneira empírica essas respostas encontradas.


2ª Etapa

I

Manifestar

Entre o cafezal e o sonho
O garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora…
[1]

Quando crianças pintam de giz as paredes da casa, uma a uma pequenas garatujas coloridas, algo aparece entre elas e aquele espaço antes vazio. Esse pequeno e singelo gesto pode ser tomado como inaugural: este lugar é outro. Ou até, este lugar aparece com meu desenho, passa a existir. Esse gesto pode tornar clara a frase de Heidegger [2]: “A ponte não se situa num lugar. É da própria ponte que surge um lugar.” O desenho da criança nas paredes inaugura então uma relação entre ela e o espaço, entre seu desejo e o novo lugar.

Do gesto da criança, podemos partir para o construir dos adultos, para a ação que realiza o desejo de construir no território. Quando no poema de Drummond se lê ‘entre o cafezal e o sonho’, pode ser o mesmo que dizer ‘entre o território e o imaginário’, ou ‘entre o local e o desejo’. Construir a ponte inaugura o lugar dela no espaço que antes poderia ser quaisquer outros que o imaginário concebesse. No sentido antigo que Heidegger coloca em seu texto, “construir diz que o homem é à medida que habita.” Habitar, em seu mais essencial, é permanecer, demorar-se junto às coisas.

O espaço tantas vezes é esse lugar de passagem. Onde está o lugar de permanecer? Permanecer não somente por preceder um outro itinerário, um movimento, um próximo passo; mas uma forma de apropriação, uma demora, que existe como sentido para o local em que se habita. Habitar cotidianamente é também criar. Um espaço onde se permanece tem seus sentidos mutados, seus propósitos transformados em novos significados.

Mas não se pode falar de habitar sem falar de quem habita. Nós, quando pairamos, contemplamos, apropriamos, construímos; quando se troca, ouve, compreende; quando habitar revela para nós a possibilidade de agir, de modificar, de estabelecer, de circunstanciar, de criar. Bergson diz que nossa consciência é uma opacidade, uma barreira sensível, sem a qual a luz, “se propagando sempre, jamais tivesse sido revelada.” [3] Essa opacidade, essa barreira onde as possibilidades se revelam, é talvez um homem parado no Viaduto do Chá com seu microfone à mão; é, muito provavelmente, os milhares de manifestantes que param a cidade inteira ao ocupar uma avenida. Ainda há muito a se revelar.

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Pode-se definir: manifestar é o ato de tornar público. Essas pequenas ou grandes manifestações acontecem no habitar do lugar em que elas se dão, atuando como formas de revelar as possibilidades ali contidas, possibilidades de revelar novos espaços. Foucault comenta que há lugares “que são absolutamente diferentes: lugares que se opõe a todos os outros.” [4] Esses “lugares reais fora de todos os lugares” não são como as utopias, que verdadeiramente não tem lugar. Um lugar pode conter diversos espaços que ali coexistem, que se justapõe, mesmo que incompatíveis entre si. Habitar é também revelar espaços além dos visíveis.

Algumas milhares de pessoas na Paulista criam um enorme palco de dança, uma mesa de discussão, um comício televisionado, um ringue de ideologias onde antes seria somente a passagem. Moradores do entorno revelam no Minhocão uma plateia de teatro; passantes, um passeio elevado; crianças, um pequeno campo de futebol; ciclistas e skatistas um velódromo linear. Outros locais, que não foram projetados ao destino que hoje os habita, subversivamente se revelaram novos espaços de descoberta: os desafios dos patamares da Praça Roosevelt; a mesa do café da manhã sombreada pelo ponto de ônibus; as ocupações de moradia.

De todas essas significações, desses “espaços absolutamente outros” que se criam, sempre há um sujeito, um agente, que se manifesta e admite um espaço inaugurado em seu habitar. O ser que habita é o ser que torna um local vivo. Independentemente de todos os signos existentes, o homem que admite um novo espaço nunca está além dele, pelo contrário, o homem é o habitar, o permanecer nesses espaços. E esses espaços se tornam vivos quando se dão aos lugares, quando se dá espaço para o habitar. Neste poema de Brecht, intitulado A Fumaça, vive o sujeito que habita:

A pequena casa entre árvores no lago.
Do telhado sobe a fumaça
Sem ela
Quão tristes seriam
Casa, árvores e lago.

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Todos esses espaços que coexistem são denominados heterotopias por Foucault. Existem como formadores de outros sentidos, além do físico e do visível, ou melhor, contemplando o físico e o visível e deles tornando-se contraespaços. O tempo histórico é repleto de momentos onde espaços e imaginários se entrecruzaram, de criações e ilusões que se concretizaram ou desapareceram no território: a caravela portuguesa que atravessa o infinito desconhecido, o perfeito regime comunista dos jesuítas, o alpendre da casa colonial que abrigava o desconhecido, a construção do Planalto Central. A partir do momento em que se imagina, há uma nova heterotopia.

Descobrir essas heterotopias na história, como recortes no tempo, onde formas de habitar ocorreram, onde manifestações transformaram e criaram novos espaços, é ter a possibilidade de compreender a vida dos lugares. Há momentos, viradas, pequenas resistências e manifestações, onde o que se conhece sobre um lugar pode ser transformado, onde se constrói e continua um acúmulo de signos, ideias e contradições.

Essas viradas são determinados momentos na construção dos espaços onde se pode “ver” novas maneiras de habitar. Para, no entanto, existir um novo olhar, o confronto tem que o preceder, um embate entre dois modos de habitar, e este confronto só nasce da impossibilidade de construir outros modos no presente. Habitar um lugar de uma maneira que o ressignifique provém deste embate. A virada é a síntese deste embate.

Há em todos os lugares viradas a serem reveladas. Manifestar-se no espaço, ou seja, demorar-se nele e revelar novas possibilidades, é poder dar vida aos desejos de habitar. As paredes agora habitadas por garatujas não são as mesmas paredes vazias de ontem. Talvez nessa existência, mesmo curta, do imaginário manifestado, exista certa opacidade de que Bergman falava. Essa película sensível é capaz de revelar para nós, como a luz é revelada em toda sua plenitude de cores, um espectro infinito e multicolor de possibilidades de habitar. Essa infinitude de possibilidades sobre o espaço é o que pode torná-lo outros: descobrir espaços além dos que hoje habitamos, que inaugurem novos modos de habitar, modos mais livres e modos mais simples.

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1 Poema reproduzido em parte. Original em Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1983.

2 HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. Conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954.

3 BERGSON, Henri. Matière et mémoire, 1896.

4 FOUCAULT, Michel. Des espaces autres. In: O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo, n-1 edições, 2013.


3ª Etapa

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II

Virada? 

Em março de 2016, a Place de La Republique, em Paris, foi ocupada por manifestantes que se opunham à uma nova lei trabalhista draconiana na França. O movimento é um dos mais recentes ao molde do “Ocupa” em Madri, de 2011. Apesar das diferentes pautas, entre a austeridade e a ‘libertação’ dos espaços públicos, essas manifestações tem um ponto convergente muito importante: materializarem uma síntese do conflito com o modelo vigente. Ocupar o espaço e habitá-lo por um tempo maior que a duração de um dia, criar novos meios de ali habitar, é atuar politicamente e criar novos desejos. Mas onde entra o “lugar” nessas manifestações?

Todas as ocupações que vimos acontecer desde a virada da década trouxeram uma nova maneira de olhar a política, a cidade, as manifestações públicas, as ações coletivas, pois haviam confrontos a serem resolvidos fora da escala institucional. Um novo olhar sobre o espaço à ser construído. Nas manifestações que começaram na Puerta del Sol em Madrid, os próprios manifestantes já participavam de um novo modo de habitar. Para Raquel Rolnik, essa ocupação é também uma inclusão:

a ocupação empreendida por um movimento social significa “liberar” o lugar para permitir que a população nele intervenha, desafiando a tentativa das autoridades de excluí-la (de um lugar, de um projeto, de um processo decisório.)5

Como na Puerta del Sol, o marco zero de Madri, a Praça da Sé foi (e ainda é) palco de diversas manifestações, mais simbolicamente as Diretas Já!, que mesmo sendo provisória, ocupou uma parte significativa do centro. Hoje, no entanto, o paralelo na cidade paulista que se pode traçar talvez só alcance, tanto em significado como em dimensão, as avenidas ocupadas em todas as manifestações desde 2013. Manifestar nas avenidas tem um propósito claro: impedir seu funcionamento instituído. O local está ali, dado, mas seu uso é definido a priori e quase impassível de novos significados. A cidade trava. As maiores manifestações atuais do país se deram na Av. Paulista, um dos maiores eixos econômicos da América Latina. Afinal, a rua é pública.

Vimos, mais recentemente ali na Av. Paulista o confronto de duas visões que, pela intolerância, não puderam conviver. A forçada polarização não ajuda, criando visões que, de fato, não puderam habitar juntas. Uma delas, no dia 17 de abril, a primeira votação do impedimento da presidenta na Câmara, foi “acuada” para o Vale do Anhangabaú. Mas o que acontece com uma manifestação no espaço como o Anhangabaú? Até hoje, o vão do MASP é a possibilidade maior para existir as diversas visões, pois é um plano-devir, onde existem muitas maneiras de habitar. Mas, se atendo ao Vale do Anhangabaú como o fim da marcha das Diretas Já! e um local central na cidade, como uma manifestação pode ali concretizar e materializar suas visões? Como pode ocorrer ali uma síntese dos confrontos, permitindo a erupção de novas maneiras de usufruir a cidade, de criar relações sociais e quadros políticos? É inegável o valor simbólico que ainda sobrexiste ali sob as diversas camadas de sua história, mas estes valores ainda tem força?

À ocupação que ocorre agora na Place de la République, pelo movimento que se intitulou Nuit Debout (traduzido como “vigília noturna”), não tardou as diversas manifestações contrárias, desde a polícia sempre presente e constantemente desmontando a ocupação, até a vizinhança e comerciantes da região que pressionam as autoridades para dispersar definitivamente o movimento. Depois de um mês de ocupação, a prefeitura de Paris passou um decreto para limitar a duração das atividades de assembléia. Neste ato se vê, materializado, a síntese de todo o confronto. Para a política vigente, é inadmissível que se crie assembléias, que possa ali naquele espaço inaugurar um movimento novo, de relações novas, de políticas novas, que permita, por meio das relações horizontais, uma nova virada. É dessa síntese, que ali foi materializada por meio das assembléias diurnamente, que se entende onde existe o próximo passo. Como a criança que desenha as garatujas, esse novo lugar é inaugurado com sua ocupação e, a partir desse ponto, cria-se um espaço novo que carrega o significado que o movimento quer disseminar. A própria ocupação é o novo espaço, uma experimentação de possibilidades de habitar. Quando entrevistados, todos os manifestantes do Nuit Debout se identificam como Camille, um nome de gênero neutro, inaugurando ali uma heterotopia onde a visão igualitária prevalece.

A ação política coletiva, para Rancière, é a única forma de construir um mundo comum. O único modo, ele diz, “é a própria ação política, autônoma em relação aos lugares, aos tempos e à agenda estatal”.6 Quando fala dos lugares, os retira de sua dependência com a política, talvez no sentido de tirar do território a “essência” para a ação política prevalecer. O espaço que é autônomo não é condição para essa ação política, mas permite sua existência numa forma mais livre. As ocupações em um espaço público, já carregado de significados – mas que estão fora de entraves privados, institucionais e estatais – que fazem parte da lógica de geração dos espaços urbanos, contém a possibilidade de gerar novos modos de ação política. Mesmo dentro desse sistema e suas regras, o espaço público tem a qualidade da horizontalidade, e seus signos podem ser apropriados para se transformarem em novos e, portanto, contraespaços, que não tem uma relação determinante com a política. A importância do lugar se dá nessa própria autonomia, em sua capacidade de gerar uma nova forma de habitar pelo seus próprios signos e qualidades.g28_entrega03_012

Por que no Vale do Anhangabaú as manifestações parecem inertes? Quando a divisão política se espacializou e parte da manifestação foi para o Vale, a ação política incomodou muito menos do que ao ocupar a Paulista e outras avenidas. Fechar a Paulista atrapalha, mas o espaço do Vale não têm as mesmas características que a avenida. Na última manifestação (do 1o de maio), os espaços verdes do Anhangabaú foram limitados com grades e havia um espaço certo para o comício, a imprensa e as diversas barracas. Mesmo quando se ocupa o Vale, então, sua forma é acuada, controlada e determinada.

Mas porque, numa manifestação grande o suficiente, ou melhor, numa ocupação, não se habita o Vale inteiro, sem limites e grades? Se ocupa por tempo indeterminado, como os Ocupa? Sua dimensão importa, mas talvez o mais importante seja sua falta de conexão com a cidade: o espaço é descolado, existe em outro patamar, encurralado e limitado por questões projetuais.

Toda a conformação do Vale tende a minar sua vocação democrática, sua possibilidade de ser um espaço horizontal para a experimentação pública. Um espaço horizontal, no entanto, não é neutro: ele é ligado à cidade e seu funcionamento, como é a Puerta del Sole a Place de la Republique. A neutralidade que existe no Vale do Anhangabaú pode ser traduzida mais por um esquecimento. Existe o desejo para projeção de um lugar naquele local, onde se possa manifestar; na coerência da palavra, “tornar público”. As manifestações recentes anunciam uma nova virada? De todas as possibilidades que existem no Vale, de seu valor simbólico e histórico, há indícios que novos espaços possam surgir no centro da cidade, que novas ocupações possam revelar outras maneiras de habitar. A manifestação tem imaginários e desejos suficientes para revelar uma nova virada: o momento da síntese, onde se pode experimentar e vislumbrar novos espaços, novas heterotopias.

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4ª Etapa

 

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Apresentação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Quais fatores permitiram as viradas tomarem parte na história?

Certas determinações contextuais e uma estrutura vigente, sem dúvida, mas de maior importância são suas contingências (os pensamentos e ideologias da época e a crítica às circunstâncias presentes), os elementos que criam as condições para se vislumbrar uma virada. Uma crítica, portanto, aos procedimentos que conduzem as transformações da cidade, mesmo que essa crítica venha dos mesmos condutores dessa transformação. A virada é tomada como uma resposta aos movimentos concretos, e historicamente, como a síntese de um embate entre o olhar dos agentes institucionalizados de transformação do espaço. Mas, o que propomos é, nesta conjuntura, tentar observar como uma virada pode vir não só de cima, dos mesmos movimentos que sempre conduziram a transformação e expansão da cidade, mas também daqueles que usufruem dela, portanto, a parte da população que a habita de uma maneira contemporânea e urbana, sem os limites estabelecidos pelos conceitos atrasados e esgotados de urbanização, sem o autoritarismo crescente e os limites espaciais impostos pelo capital. A cidade como vemos hoje é vítima desses agentes, do capital como urbanista, e segue suas regras até o limite: a expansão indiscriminada e irrefreada, impossível de se controlar ou legislar, e todas as consequências. Mas, podemos propor uma inversão, dar à cidade sua autonomia por direito, se a observarmos como uma construção de agentes não-institucionalizados, se nos esforçarmos e aprendermos a olhar com maior dinamismo essa construção. Se mudarmos o ponto de referência, a cidade aparece no território antes pela ocupação espontânea e informal do que com a pré-determinação de quem governa aquele território (e não seria o Brasil essa imposição em conjunto com a espontaneidade?).

A virada não existe nem antes nem depois de uma transformação concreta, ela anuncia o novo sentido que o espaço já contém em si, em seus signos e ocupações. Portanto, podemos imaginar que hoje há possibilidade de criar esses contraespaços que exploramos, que possam se tornar espaços cívicos, e portanto plurais, pelas ações de quem diariamente caminha sobre esse território e faz dele sua polis, lugar. Há, no entanto, um longo caminho até a construção da cidade e sua transformação ser gerida por aqueles que a habitam, mas os signos deixados por experimentações, contracondutas 1 , ocupações, nos dão lapsos, ideias e ferramentas para continuarmos numa caminhada não paralela ao poder instituído no território, mas talvez em outra direção, também não contrária, mas não mais forçada, ainda que aos trancos. Uma direção onde a cidade é autônoma para atingir seu potencial, não mais vítima de ideais contrários à sua natureza plural.

As manifestações, no entanto, que ocorreram no Vale do Anhangabaú, são exceções fabulosas, destacadas do uso cotidiano dali. No dia-a- dia o Vale apresenta suas questões, onde ele deve realizar seu potencial, diariamente. Todos os dias o Vale é, se compararmos com a Paulista, um lugar ermo. E como reverter esse estado (é de sua natureza espacial?), entendendo que existem ali os signos para essa reversão, que é ali onde deve se agir? Afinal uma manifestação não tem muito de ordinário ou cotidiano. Devemos aprender (ou apreender) os sentidos que existem nas manifestações, considerá-los como são, únicos, especiais, e da anunciação de seus manifestantes (não das instituições que vampirizam o acontecimento) capturar a potência que o Vale tem como espaço. O que se viveu na manifestação brilha com tamanha intensidade que aqueles que estiveram ali a manifestar, que experienciaram, não querem mais se separar, mas construir de fato o que agora faz falta à sua vida e naquele acontecimento existiu. É entender os devires daquele espaço para poder aplicá-lo no dia-a- dia.

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Como Peter Pal coloca:

“A imaginação política não é uma esfera sonhadora e desconectada da realidade, ao contrário, é precisamente a capacidade de se conectar com as forças reais que estão presentes numa situação dada, as forças do entorno” 2

Há especificidades que moldam as potências do Vale, as tornam eixos para caminhar em direção a uma relação ambígua naquele espaço: mais autonomia e maior interação com a cidade. Longe de contraditório, um espaço cívico heterotópico é necessariamente múltiplo e, como Foucault coloca, comporta em si incompatibilidades, que para os conceitos rígidos do urbanismo que construiu a cidade, se tornam impossíveis – mas não seriam incompossíveis os espaços da cidade?

Não devemos ignorar os múltiplos agentes da criação da cidade, mas valorizar quem habita o espaço e dele aprender, aplicar essa inversão do conhecimento, entender pela experiência vivida e não só pelas teorias e planejamentos. Entender que a experiência da manifestação indica o potencial do manifestar do Vale, mas diariamente é onde existem as maiores falhas e deve se transformar os modos de habitar. Criar essa ponte indissociável entre a experiência sensível da manifestação e o habitar cotidiano do Vale é o que conduzirá a nova virada.

Os atuais elementos no local limitam não só o habitar cotidiano como o potência das manifestações. Na situação atual, e depois do do enterramento das vias em 1992, a cidade e seu principal fluxo, que é o automóvel, pode livremente ignorar o Vale, sem mesmo ter que rasgar seu espaço como é de costume. O Vale está neste patamar intermediário que, diariamente, é ocupado somente em suas bordas ou transições (algumas esquinas e o Viaduto do Chá/Sta. Efigênia), e caracteriza-se por essa impossibilidade de conectar as duas bordas que cria. O Anhangabaú tem que estar incluso no movimento da cidade.

Eliminar a limitação do espaço com seu significado atual de fundo de vale, de um obstáculo. Torná-lo, como dito anteriormente, um espaço autônomo desvinculado de sua dependência com a política, talvez no sentido de tirar do território a “essência” para a ação política prevalecer.

Outro fator importante é o resgate de valores históricos atribuídos ao Vale. A virada não existe nem antes nem depois de uma transformação concreta, ela anuncia o novo sentido que o espaço já contém em si, em seus signos e ocupações. Assim, entender os momentos de realce das potencialidades locais é uma operação fundamental para criar uma imagem real do que pode acontecer ali, de quais os contraespaços outrora foram produzidos ou pensados e, finalmente, dos momentos de ativação do espaço por sua vocação pública. A centralidade que esse local emana é um dos pontos mais fortes de resgate. Pensar nos episódios pontuais, nas manifestações em 2016 como memória nostálgica de outras ocupações, das diretas já, da cidade para o pedestre, o parque que não é ocupado por carros, do local de livre circulação e de atração da cidade para si, como local autônomo central, é um sentido absolutamente indispensável à nova virada.

Mesmo com a identificação da exceção fabulosa que exacerba o sentido do manifestar no Vale do Anhangabaú, nota-se que a situação atual em termos de desenho e de deslocamento em relação à cidade ficam explícitos nessa tentativa de ocupação. As manifestações de 2016 escancaram a incompatibilidade da laje-parque com uma vocação pública. Elas revelam que o Vale não pode, tal como está hoje, cumprir o papel de palco do exercício cívico em seu sentido pleno.

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Todas as indicações de caminhos e, sobretudo, a compreensão de que o Vale do Anhangabaú foi apontado num momento focal como potência, revelam ainda, no entanto, que a nova virada está anunciada para o local. Apesar disso, é fato que São Paulo – e os agentes produtores do espaço, os arquitetos, os governantes, as políticas, a iniciativa privada, os habitantes – não virou.

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A iminência desse momento deixa clara a impossibilidade hoje de entender o que está por vir.

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1 Ver: FOUCAULT, Segurança, território, população. (1978). “assim como houve formas de resistência ao poder na medida em que ele exerce uma soberania política, assim como houve outras formas de resistência, igualmente desejadas, ou de recusa que se dirigem ao poder na medida em que ele explora economicamente, não terá    havido formas de resistência ao poder como conduta?” p. 257

2 PABERT, Peter Pàl. Carta Aberta aos Secundaristas.