TEMPO LIVRE – G10

ETAPA 3

“A mistura de classes sociais, culturas, línguas, etnias e religiões que se dá na cidade é o melhor antídoto que inventamos até hoje contra a intolerância e os fundamentalismos. […] Daí que o atributo essencial de um espaço público vivo seja o conflito, não a falsa harmonia.”

A abordagem que adotamos para tratar do tema “tempo livre na periferia” – com o distrito do Campo Limpo como caso de objeto de estudo – versa sobre a intervenção no espaço público e a maneira como se insere e relaciona com um determinado cenário. Focamos nesse trabalho, portanto, na interação entre objeto e contexto, problematizando a partir do anseio de resistir ao progressivo processo de subutilização do espaço público.

Iniciamos nosso percurso buscando no território do Campo Limpo um recorte do que julgamos ser o espaço mais problemático desse ponto de vista, cuja configuração condicionasse de modo mais agudo a renúncia do espaço público como vivência de cidade: o Parque Munhoz. Com uma área na qual caberiam 5 parques da Luz, com lotes gigantes, salta aos olhos a extensão dos incontáveis muros que negam o espaço que os circunda. Numa análise mais rasa, julgar esses muros como problemáticos em si pode parecer razoável, mas a partir de um olhar mais atento a questão se revela mais complexa.

Numa primeira aproximação desse espaço, propusemos uma intervenção local dentro dessa área. Buscamos evidenciar a ausência de qualquer acontecimento entre os planos formados pelos muros e grades que compõe o vazio entre condomínios. Com o intuito de ler as influências que esse lugar sofre do contexto, bloqueamos com lonas uma rua que, de tão descolada de sua adjacência, não possui endereço. Isso se dá pelo fato de não haver nela sequer entrada para qualquer desses condomínios. São três planos físicos contínuos, formando um ‘U’. Na ocasião, essa influência se mostrou muito mais determinante do que imaginávamos, com o poder público nos impedindo de concluir a intervenção. Deve-se enfatizar aqui que essa resposta à nossa intervenção é reveladora de forças imateriais que exercem forte controle sobre o desenvolvimento da urbe.

“É um momento em que se multiplicam as fronteiras e os obstáculos, as linhas de fratura e os muros, que não podem já ser considerados simplesmente como bloqueios colocados pelo poder, ou como pântanos em que nos atolamos, mas sim interfaces que polarizam as relações. Uma interface é uma membrana que vibra revezadamente com os golpes de dois mundos diferentes, de duas pulsões de vida diferentes. A interface é um lugar de entrada e saída, de conversão e tradução de linguagens, de transformação daquilo que chega e daquilo que se vai.”

Digredimos nesse ponto a um exercício imaginativo – com o fim de relativizar a problemática do muro físico – de descontextualização do ambiente que criamos com nossa intervenção: os três planos existentes, somados aos dois que construímos, formando uma “caixa”. Buscamos através disso discutir, até de um ponto de vista poético, a influência mútua entre objeto e contexto. Enquanto no mar esse espaço poderia ser análogo a um barco, se o invertermos ele torna-se um bolsão de ar para caminhar sobre o fundo do espaço subaquático, por exemplo. No deserto, poderia servir como cobertura. O abrigo que proporcionaria transitaria de acordo com a posição do Sol. A noite, serviria de abrigo do frio rigoroso. No topo de um edifício, vislumbraríamos a cidade do mirante que comporia com a estrutura existente. Orbitando a Terra, especulamos a mais aguda situação da interferência que um objeto poderia influir no contexto: um choque com um satélite poderia interromper o funcionamento de importantes infraestruturas de comunicação do planeta.

Retornando à rua na qual intervimos, torna-se evidente que o que provoca a configurada ausência de acontecimentos urbanos no Parque Munhoz é a relação entre as espacialidades que o compõe. Ou seja, a exaustiva repetição da mesma composição que encontramos na rua na qual atuamos fisicamente. Sendo assim, propostas locais, sejam elas materiais ou eventos de ocupação do espaço, exercem influência no entorno numa escala incomparável à força contrária: do contexto no objeto/evento, dado seu caráter pontual.

Nos embasamos nessa leitura e exercícios poéticos para fundamentar nossa proposta. Ainda com o espaço público como campo de proposições, nos restou o negativo dos lotes para tal: as ruas muradas. Inserido num contexto tão determinante na utilização do espaço, a intervenção deve ser igualmente transformadora. Sendo assim, buscamos propor para essa área uma situação de exceção na cidade. Uma intervenção espetáculo, que provocasse o uso que ambicionamos, que funcionasse como vetor de transformação da relação dos condomínios com a rua. Uma vez mais, como exercício de que proposta poderia ser essa, repetimos a temática da atividade inventiva anterior: o mar, o deserto, o ar e o cosmos, inseridos no Parque Munhoz.

O Aquário Munhoz funcionaria ocupando as calçadas e o espaço sobre a malha viária do bairro, criando um passeio elevado para pedestres, que caminham sobre a água. A praia urbana construiria um deck sobre a rua, apoiada sobre um muro que contem as dunas de areia, sobre as quais os moradores e visitantes podem praticar manobras no sandboard; além de corpos d’água para refrescar nos dias quentes. No prediorismo – em analogia ao arvorismo – se erguerá sobre uma torre uma plataforma a 200 metros do chão, em suporte a uma estreitíssima passarela. Nela o visitante, amparado por equipamento de segurança, poderá vislumbrar a cidade e experienciar o vazio, e lançar-se no nada, descendo a maior tirolesa da América Latina. Já no planetário, o observador tem a oportunidade de contemplar aquilo cujo contexto está além da nossa possibilidade de conhecer: o universo visível. Cada um dos três observatórios terá como acesso “braços” que capturam o visitante e o eleva aos céus.

Construiremos assim, na periferia de São Paulo um complexo dedicado ao usufruto do tempo livre; objeto que transforma um contexto que hoje se volta para dentro do lote e vira as costas ao espaço público.

ETAPA 2

Memorial Descritivo 

A abordagem do tema e área propostas pela disciplina de EV que adotamos pode ser descrita como heterodoxa. Buscando questionar a lógica privatizadora dos espaços de lazer e cultura na cidade que relega as ruas ao trânsito do automóvel – já profundamente incorporada no imaginário paulistano – questionamos inevitavelmente a metodologia de intervenção no espaço público, de modo a buscar diferentes formas de se opôr a esse raciocínio. Paradoxalmente busca-se garantir segurança a uns poucos quando a lição histórica que podemos tirar do desenvolvimento urbano de São Paulo é que somente como bem universal pode a cidade ser segura.

Julgando ser “atributo essencial de um espaço público vivo o conflito, não a falsa harmonia”, buscamos formular uma proposta de intervenção que provocasse uma discussão a respeito do espaço público, e para tal foi necessário elencar alguns critérios para orientar as decisões de projeto. A principal delas foi a necessidade de ser um objeto instalado como provocação clara, que não se camuflasse no já profundamente problemático espaço público. Elencamos como outro atributo importante à intervenção que fosse um questionamento não discursivo, que por diferentes interpretações possibilita uma variedade de respostas. E estabelecemos como estudo de caso as situações mais agudas de espaço residual; ruas que nem sequer constituem endereço: muradas de um extremo ao outro, sem qualquer acesso.

O símbolo do muro povoou o imaginário do grupo ao longo de toda a discussão, em grande parte devido à leitura da barreira urbana como produtora de violência. Tendo bem formulado um conceito para embasar a formulação da intervenção, no entanto, nos dedicamos a uma pesquisa de reconhecimento do espaço do Campo Limpo, que nos revelou a maravilhosa complexidade que habita e produz a cidade. Fomos em busca de evidências de que corroborassem com a hipótese da não apropriação do espaço público por negligência das forças sociais que constroem a cidade, mas numa escala local encontramos exceções à regra: ruas muradas com intenso movimento de pedestres, assim como praças equipadas com bancos, jogos e parquinho sem qualquer uso.

Com isso nos pareceu claro que a escolha do local a se intervir deveria ser apontado por suas particularidades no contexto da cidade. Na compreensão do muro como objeto segregador, encontramos na R. Donizete Joaquim Gonçalves a situação mais paradigmática da problemática que queríamos evidenciar: durante todo o tempo que dedicamos ao reconhecimento daquele espaço, transitou um único carro, além das proféticas palavras pixadas que diziam, “muros e casas não os protegerão: o inimigo vive dentro de você”.

Buscamos então a partir desse conceito e leitura propôr uma “intervenção-vacina” (Similia similibus curantur; semelhante pelo semelhante se cura), que na descontextualização do símbolo da barreira pudesse provocar um questionamento da função do muro na cidade através da evidência dessa morte da cidade pela segregação. E a partir da proposta, prevemos algumas possíveis reações:

  1. O impedimento da instalação do objeto, antes mesmo de ser finalizado;
  2. A ação ativa contra o objeto após a instalação, de destruição do mesmo, reclamando aquele espaço inútil como bem público, mesmo que subutilizado até mesmo para o trânsito de veículos, evidenciando a defesa pouco reflexiva da problemática desse espaço;
  3. A perduração da instalação por tempo indeterminado; que seria talvez a possibilidade mais interessante, comprovando a ineficiência desse espaço como algo além de resíduo. Caso se concretize essa possibilidade, a ideia seria a partir disso “privatizar” a rua, reclamando-a como espaço de cidade viva em potencial, qualificando-a com um uso a ser desenvolvido numa segunda etapa.

ETAPA 1