G25_ Galeria de Galerias_ Reconhecer São Paulo

1a ETAPA

São Paulo através do comércio

Dentre os primeiros ciclos econômicos brasileiros, quais tiveram sua produção centrada em São Paulo? São Paulo, quando muito, se servia como passagem: durante o ciclo do ouro de Minas Gerais, se passava por São Paulo para chegar ao porto de Santos. A cidade, que até então não passava de um vilarejo, era tão pequena e pouco significante à economia do país que quase perdeu o título de capital do estado.

Foi só no ciclo do café que a São Paulo como hoje conhecemos começou a tomar forma. O café não era produzido na cidade. Porém, era na cidade que ele era comercializado: foi em São Paulo em que os principais bancos da época se estabeleceram. A partir daí, São Paulo se tornou a principal sede econômica do país: foi nela que se instalaram as automobilísticas em meados do séc. XX, é nela que se concentram as sedes brasileiras da maior parte das empresas multinacionais hoje.   Logo, foi através de relações comerciais que São Paulo se consolidou, e se consolida até hoje, como a maior metrópole do Brasil.

Não à tôa, São Paulo conta hoje com mais de 10 galerias na região central, quase 60 shoppings e inúmeras ruas com expressiva atividade comercial. Em outras palavras, sem o comércio, a cidade não seria a mesma.

São Paulo através das galerias: a cidade permeável

Em meados do séc. XX, notou-se pela primeira vez a necessidade de concentrar o comércio em um só local, reservado e projetado exclusivamente para este uso. A ideia culminou no desenho de muitas galerias no centro de São Paulo, região onde se concentrava a maior parte da elite econômica da época.

Não à toa, o projeto das galerias pode ser resumido a uma fusão entre a loja e a cidade. Para usar o espaço de uma galeria, é necessário adentrá-lo. Sua entrada, porém, está voltada para a rua e, dentro deste espaço, aos pedestres. Por isso, na maior parte das vezes, as galerias possuem entradas voltadas a várias ruas, servindo quase como uma “praça vertical”, uma vez que conectam diferentes espaços. Caminhar por uma galeria é, portanto, caminhar por um espaço fluido, aberto: uma pequena parte da cidade em que os caminhos se voltam exclusivamente ao pedestre.

 

São Paulo através dos shopping-centers: a cidade ensimesmada

 

Um shopping-center, como diz o próprio nome, é o antro do consumo: um espaço fechado onde tudo o que se vê está estritamente relacionado ao consumo. Um shopping, afinal, representa o consumo fechado em si mesmo, o consumo como forma determinante do eixo tempo e do espaço. Não à toa, um shopping representa todo o auge do cosmopolitismo: pouco importa a cidade em que ele está, desde que tal cidade apresente o número suficiente de consumidores. Como São Paulo é a cidade mais populosa do Brasil, é nela em que se concentra a maior quantidade de shopping-centers do país.

Quando estamos em um shopping nossa relação com ele é sempre a mesma, independente da cidade em que estamos. Em São Paulo, não seria diferente. Se estamos em um shopping na zona sul, ou na zona norte, a principal mudança está no preço das mercadorias; nossa relação com o espaço é a mesma: circular por entre corredores fechados em busca dos produtos que julgamos precisar: o espaço exterior é praticamente nulo, a entrada de um shopping, na maior parte das vezes, está voltada principalmente ao carro.

São Paulo através das ruas comerciais: a cidade caótica

Antes de shoppings e galerias, o comércio se dava principalmente ao ar livre, ele se misturava à cidade. Na maior parte das vezes, as atividades comerciais se davam nas praças. Assim, se separava o comércio dos fluxos de circulação, principalmente do trânsito de automóveis. Em São Paulo, porém, isto se deu de forma completamente diferente: o comércio se deu em ruas, ou seja, junto à circulação de veículos. Se um grande fluxo de pedestre atrapalha o fluxo de automóveis, e vice-versa, porque ganharam muitas ruas, como José Paulino e Santa Ifigênia, a função comercial?

Curiosamente, ainda hoje, estas ruas concentram grande atividade comercial. O que é ainda mais curioso é que, com o passar do tempo, tais ruas foram se dotando de um comércio extremamente especializado: em São Paulo, temos ruas especializadas na venda de produtos eletrônicos, de móveis e de até mesmo vestidos de noivas. Por que? Estas ruas representam, portanto, as muitas contradições do caos de São Paulo: o varejo não estar separado dos automóveis, mas sim da venda de outros tipos de mercadorias.

 

2a ETAPA

Galerias são permeáveis: por elas muitas vezes passamos sem um
comprometimento maior que o puro passar. Galerias são, portanto, mais leves.
Pensemos, uma galeria é muito mais acessível que um museu, do mesmo jeito
que é muito mais acessível que um shopping.
Galerias não tem caráter monumental, podemos passar frente a elas inúmeras
vezes sem jamais percebe-las, uma vez que seu comprometimento é somente
com o passar. Uma exposição em uma galeria jamais é permanente, ela está lá
para ser vista, para ser explorada, para ser levada, para ser passada. O
comércio em uma galeria também: um prédio extremamente permeável pode
sediar qualquer estabelecimento que atenda a quem o permeia, de salões de
beleza a escritórios, de escritórios a bares. Não precisamos de um pretexto
específico para entrar em uma galeria, entramos simplesmente por estarmos
passando e, quando entramos, inevitavelmente vemos o que há dentro.
Uma “Galeria de Galerias” seria, portanto, juntar as duas conotações básicas
das galerias, ou seja, seria uma forma de se expor a quem passa uma das
principais formas de comércio do centro São Paulo.

3a ETAPA

São Paulo, como grande parte das cidades, é definida pelo encontro. Afinal, toda e qualquer cidade é formada por o encontro: sem a ágora, por exemplo, jamais teríamos as pólis gregas. São Paulo em sua formação não foi diferente.

Devido à grande presença do catolicismo no Brasil, foram logo construídas igrejas. O Pateo do Collegio, reconhecido como um dos mais antigos edifícios de São Paulo, se tratava de um mosteiro e contava com uma igreja, hoje conhecida por São José de Anchieta. Tais igrejas, no entanto, não abrigavam somente rituais de cunho religioso, mas eram também um grande ponto de encontro. Eram nesses espaços que aconteciam as trocas sociais, bens extremamente importantes a qualquer cidade.

No conhecido Centro Novo, não poderia ser diferente. Agora, porém, não era mais a Igreja Católica a principal instituição social: este cargo cabia agora ao comércio. Não à toa, em meados do séc. XX, foram construídas inúmeras galerias comerciais, acompanhando o crescimento tanto territorial quanto econômico de São Paulo.

Tais galerias procuravam em seu interior reproduzir as características das ruas: se tratavam de edifícios de uso misto, com o térreo extremamente permeável, sendo quase um prolongamento da calçada. Eram elas agora o principal ponto de encontro, ligado não só às atividades comerciais estritamente, mas também passeio pela então nova São Paulo.

Ainda hoje, São Paulo é profundamente marcada pelo comércio, apesar de uma forma muito diferente: hoje ele é majoritariamente fechado, ensimesmado, externo a seu exterior. O Centro Novo, porém, ainda guarda as características do comércio antigo, ele ainda conta com as galerias comerciais. É impossível andar por ele sem, mesmo sem que se perceba, permear por uma galeria, ou ao menos se deparar com uma delas.

Um cartão postal de uma galeria seria, portanto, um cartão postal do Centro Novo. A mais que isso: um cartão postal de uma galeria seria um cartão postal da consolidação de São Paulo, como a hoje conhecemos.

mapa de levantamento do entorno

 

 

isométrica galerias

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4a entrega

 

Os anos 1950 marcaram um importante período para a história de São Paulo, quando a cidade aderiu à modernidade. Em outras palavras, foi na década de 1950 que São Paulo ganhou a aparência de uma cidade moderna. Não à toa, este período foi marcado pela rara aliança entre o mercado imobiliário emergente e a elite intelectual artística brasileira.

 

Em 1942, buscando defender moradores dependentes de um aluguel fixo, Getúlio Vargas decretou a Lei do Inquilinato, congelando os preços dos aluguéis por dois anos. O decreto, porém, acabou por diminuir o retorno financeiro da atividade, aumentando o risco do empreendimento. Consequentemente, o preço dos aluguéis subiu. Dessa forma, construir apartamentos para vender se tornou muito mais lucrativo que alugá-los.

 

Foi neste contexto que, em 1945, Orozimbo Octávio Roxo Loureiro e Octavio Frias de Oliveira fundaram o BNI (Banco Nacional Imobiliário). A dupla foi a primeira no Brasil a apostar no “sistema a preço de custo”. O banco identificava um terreno interessante ao mercado e prometia comprá-lo em um intervalo de até um ano. Com o terreno já escolhido, era contratado um engenheiro ou arquiteto para fazer o projeto dos apartamentos, que eram vendidos aos investidores ainda na planta. A partir do dinheiro recebido, eram calculados os custos de produção da construção, com uma taxa de 15% reservada ao lucro do empreendimento, conhecida por “taxa de administração”.

 

Por lidar com imóveis ainda não construídos, o BNI procurava contar com projetistas de confiança, já conhecidos por seus investidores. Por isso, os primeiros projetos da companhia foram assinados por Francisco Prestes Maia, antigo prefeito de São Paulo com alto prestígio social. Em 1952, porém, a dupla resolveu ir ainda mais alto, contratando o renomado arquiteto Oscar Niemeyer para o projeto da Galeria Califórnia.

 

Inaugurada em 1953, logo se tornou um marco moderno em São Paulo: os icônicos pilares em forma de V destoavam de seu entorno, ainda neoclássico. Consequentemente, a galeria começou a ser usada por grandes artistas e arquitetos brasileiros abrigando a Livraria Triângulo (sede de importantes lançamentos editoriais) e o Instituto Paulista de Desenho Industrial, criado pelo MAM e IAB. Além disso, o atual Centro Novo já abrigava importantes instituições de arte moderna no Brasil, como a primeira sede do Masp na R. Sete de Abril, administrada pelo casal Lina Bo e Pietro Maria Bardi, a sede paulista do IAB, na R. General Jardim, e a sede do MAM.

 

A rara aliança entre arquitetura de vanguarda e empreendimentos imobiliários inovadores não terminaria tão cedo. Entre 1951 e 1960, foram lançados 96 concursos arquitetônicos no Brasil, incentivando a pesquisa de arquitetura (como ter um grande rendimento em um terreno pequeno inovando no desenho e na tecnologia?) e revelando outros nomes na arquitetura brasileira. O Estado, por sua vez, acabava flexibilizando e adaptando as antigas leis construtivas às modernas inovações arquitetônicas, criando, assim, espaço para a experimentação.

 

A Avenida São Luís, transformada já na década de 1940 em uma rua residencial de alto luxo, passou a abrigar a Galeria Metrópole, fruto de outro importante concurso imobiliário, realizado entre 1958 e 1959. Após o empate dos projetos de Gian Carlo Gasperini e Salvador Candia, a Companhia Santista de Administração e Comércio selecionou os dois arquitetos para o projeto da galeria. Assim, foi projetado o conjunto de 23 andares com um bloco de 4 andares, com varandas e térreo recuado, destinados à galeria. As lojas ocupavam cerca de 50% da construção, deixando a outra metade a áreas comuns. Dessa forma, a galeria incentivava o caminho interno de pedestres, servindo como ligação entre a Pça. Dom José Gaspar e a R. Basílio da Gama, solução já adotada por Oscar Niemeyer na Galeria Califórnia e no Copan.

 

O Copan, maior investimento do BNI, se propunha a ser o primeiro conjunto multiuso do Brasil, sendo anunciado como o Rockefeller Center brasileiro. Após o fracasso da negociação do grupo hoteleiro americano Pan Am na compra do Copacabana Palace no Rio de Janeiro, Frias convenceu o grupo a investir em São Paulo, “a maior cidade brasileira, ainda sem um hotel à altura de sua riqueza”. Assim, foi projetado por Oscar Niemeyer o prédio em forma de “S”, onde ficariam os apartamentos financiados pelo BNI. Originalmente, atrás dele, estaria um prédio mais alto, no mesmo estilo da sede da ONU, que abrigaria o hotel.

 

O projeto habitacional era dividido em blocos de acordo com o tamanho dos apartamentos, que variavam de quitinetes a apartamentos de até quatro quartos. Com esta diversidade, seria possível a classes mais baixas e mais altas dividir o mesmo espaço, na região central da cidade. Inaugurado pouco tempo após o conjunto habitacional Unité d’Habitation de Le Corbusier em Marselha, o Copan apresentava vantagens se comparado a seu antecessor francês. Em seu complexo, Le Corbusier projetou espaços comerciais em andares mais altos, criando um conjunto autossuficiente, mas isolado da cidade. Niemeyer, por sua vez, desenhou o térreo aberto à rua, convidando não-moradores a usufruir do comércio e serviços do conjunto, permeabilizando a quadra.

 

Os verdadeiros reis do comércio a passeggiata, porém, são o casal de italianos Maria Bardelli e Ermano Siffredi que, após a Segunda Guerra, vieram tentar a sorte no Brasil. No início, trabalharam como publicitários no Rio de Janeiro. Vieram para São Paulo três anos depois para participar do concurso de construção do Edifício Itália e, assim, trocar a publicidade pela arquitetura. Apesar do fracasso no concurso, a dupla foi contratada pelo construtor Nelson Scuracchio, com quem desenharam edifícios de luxo em Higienópolis.

 

Foi só com o investidor Benjamin Citron e os engenheiros Jacob Lerner e Alfredo Mathias, porém, que o casal começou a fazer projetos no centro de São Paulo, desenhando novas galerias comerciais. Tais galerias, ao contrário das térreas anteriormente projetadas por Niemeyer, teriam vários andares, abrigando centenas de lojas. A primeira e menor delas, a Galeria Sete de Abril inaugurada em 1959, tinha duas fachadas, ligando a R. Sete de Abril à R. Bráulio Gomes. Em pouco tempo, esse tipo de construção seria replicado.

 

Em 1963, Maria e Ermano inauguraram as Centro Comercial Grandes Galerias, hoje conhecidas por Galeria do Rock. Com sete pavimentos, recebe iluminação natural, devido aos rasgos ovalados feitos nas lajes, onde estão as escadas rolantes. A galeria é também completamente porosa: as lajes recortadas criam espaço convidativo à passagem, além do prédio assemelhar-se a uma enorme vitrine vertical, atraente ao olhar. Em seus primeiros anos, a galeria estava aberta 24 horas, mesmo após o fechamento das lojas, servindo sempre como passagem. Com a valorização do eixo Augusta-Conjunto Nacional para o comércio de luxo, a partir da década de 1970, as Grandes Galerias começaram a receber roqueiros e lojas de discos, a quem deve o nome de Galeria do Rock.

 

A permeabilidade, fortemente presente nas galerias Bardelli-Siffredi, devia-se à possibilidade de transferir as calçadas para o interior do lote, ampliando o número de vitrines (os terrenos no centro já estavam muito inflacionados, além de contarem com poucas fachadas para disponibilização de vitrines). Não à toa, o pavimento mais valorizado era o térreo. Por isso, Maria e Ermano criaram em suas galerias dois térreos: rampas no nível da rua levam a um subsolo ou para um térreo elevado, meio nível acima. Dessa forma, ambos os pavimentos servem de entrada à galeria, dobrando, assim, o metro quadrado mais nobre.

 

Foi projetada, também pelo casal, a Galeria Presidente, hoje conhecida por Galeria do Reggae vizinha à Galeria do Rock, invertendo alguns conceitos. As lajes, ao invés de se retraírem, são projetadas para fora, formando um volume ovalado e envidraçado, onde as lojas parecem servir de mirante para a rua.

 

A Nova Barão, última galeria desenhada pela dupla, é completamente aberta, servindo como corredor de passagem entre a R. Sete de Abril e R. Barão de Itapetininga. Assim, a fachada com 40 metros de largura foi replicada em seu interior, dando às vitrines um espaço de 240 metros. Além disso, o conjunto é multiuso: acima da galeria foram erguidos quatro blocos, dois abrigando escritórios, enquanto a outra metade abriga apartamentos de um quarto.

 

Com a decadência do centro, a aliança moderna entre arquitetos e empresários foi desaparecendo, se tornando quase inexistente no Brasil. Consequentemente, o comércio nos subúrbios foi se tornando cada vez mais fechado, ensimesmado, externo ao seu exterior: as galerias comerciais deram lugar aos shoppings-centers. O Centro Novo, porém, ainda guarda características dessa aliança. Ele ainda guarda as icônicas construções que hoje servem como grande símbolo de São Paulo, dentre elas, as galerias comerciais. É impossível andar por ele sem, mesmo sem que se perceba, permear por uma galeria, ou ao menos se deparar com uma delas.

 

Um cartão postal de uma galeria seria, portanto, um cartão postal do Centro Novo. A mais que isso: um cartão postal de uma galeria seria um cartão postal da consolidação da São Paulo moderna, como a hoje conhecemos.

rock

 

Referências bibliográficas:

 

LORES, Raul Juste. São Paulo nas alturas. São Paulo: Três Estrelas, 2017.