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ainda o direito a cidade?

Ocupações

Apenas vinte e dois dias depois da pichação no Pátio do Colégio, uma tragédia maior volta a nos chamar a atenção. Desta vez um incêndio, de grandes proporções, põe abaixo outro patrimônio arquitetônico da cidade. A desgraça, nesse caso, não se restringe ao dano material e simbólico: vidas foram levadas.

O incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida, ocorrido na madrugada do dia 1º de maio, além de representar um triste espetáculo, amplamente difundido nas diversas mídias, também tratou de repercutir sua mensagem de socorro. Mais um Olhai por nóis?

Famílias desesperadas, despejadas pelo incêndio, evacuam o edifício, revelando, diante das câmeras, uma ocupação popular, organizada por um dos muitos movimentos de luta por moradia existentes em nossa cidade. Inevitavelmente vem à tona as condições precárias em que se vive nas ocupações, o que nos leva, imediatamente, a pensar na absurda carência habitacional existente em nossas cidades e, consequentemente, na ineficácia de nossas políticas públicas, e de nossa sociedade como um todo, quando se trata de olhar para os menos favorecidos.

O incêndio, nos desperta para aquilo que é a nossa tragédia de cada dia e já ninguém vê, descortinando de forma violenta, iniquidades e injustiças veladas e deflagrando um processo público de conscientização e reflexão sobre o drama social profundo e duradouro em que os menos favorecidos são protagonistas involuntários.
Afinal, o que tem em comum os dois episódios convocados aqui? Ambos revelam uma população esquecida por uma sociedade que não tem olhos para seus entes menos favorecidos. São reivindicações. Tanto a pichação quanto as ocupações, com seus infortúnios e transgressões, conferem alguma visibilidade àqueles que foram esquecidos pelo poder público.

Transgressões porque tornam público, de forma contundente, aquilo que vem sendo mantido oculto, sistematicamente. Quando se manifestam em pleno centro da cidade, quebram o paradigma da segregação espacial e conseguem conquistar aquilo que lhes tem sido negado: um espaço na cidade “proibida”.

Em sua pesquisa, junto aos jovens da periferia de São Paulo, Alexandre Barbosa Pereira, professor da Unifesp e doutor em Antropologia Social pela USP, ao indagar sobre a motivação para a pichação, encontrou a seguinte ordem de importância: em primeiro lugar, disparado, a visibilidade, depois o lazer e, por último, bem menos relevante, o protesto. “Quem não é visto não é lembrado, quem não arrisca não é lembrado”.

Também as ocupações despontam como um gesto que vai além do alivio imediato para a falta de um lugar para morar. A ideia de ocupação, de uma maneira mais ampla, carrega em si a ideia de reinvindicação. Seja a reinvindicação de um lugar melhor para se morar, seja a reinvindicação por uma cidade melhor, seja, em última instancia, a reinvindicação do direito à cidade.

A luta pelo Direito à cidade

No caso da luta por moradia, falar em direito à cidade aponta para uma dimensão coletiva maior que não se encerra no lugar para dormir. Não ter casa não significa apenas não poder permanecer fisicamente na cidade, mas não pertencer a seus laços sociais. Conseguir emprego ou usufruir da maioria dos serviços públicos tornam-se tarefas praticamente impossíveis sem endereço formal, por exemplo. Com a negação do direito à moradia, o direito à cidade também é negado.

Já os movimentos que lutam por parques e cinemas de rua, ou contrários à construção de grandes empreendimentos, dão ênfase à perda de espaços de encontro, à aniquilação do espaço público e à padronização das cidades. O repertório dessas demandas está vinculado a uma nova miséria urbana, na medida em que o espaço público deve ser entendido como a própria alma da cidade.

Segundo Bianca Tavolari, mestre e doutoranda em direito pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap, “…as demandas pelo direito à cidade trazem uma novidade particular. Se é certo que alguns dos movimentos se organizam para que esse direito se torne lei ou figure em um tratado internacional reconhecido pelas Nações Unidas, os protestos de 2013 mostraram que a reivindicação do direito à cidade não está necessariamente voltada à institucionalização sob a forma de lei. Uma das novidades está no fato de que dizer “direito” não implica necessariamente traduzir essa demanda em direito estatal. E, por isso, não é apenas uma nova forma de cidadania que está em jogo, mas também uma nova maneira de olhar para o direito.”

Imagem de capa: Pichação praticada na madrugada do dia 9 de abril de 2018, com os dizeres “OLHAI POR NÓIS” [sic], sobre a fachada do Pátio do Colégio, lugar simbólico que marca o nascimento da cidade de São Paulo. Apenas três dias após a pichação, os responsáveis foram identificados e multados em R$ 10 mil, cada. Quatro dias depois, a pichação foi apagada e as paredes restauradas.