Passagens heterotópicas

Na quinta-feira de seis de agosto tivemos um debate coletivo no qual o cemitério foi sugerido como programa para o EV deste semestre. Comentamos que, como lugar de conexão entre vida e morte, o cemitério relaciona-se com o tema das passagens e pode ser adotado como exercício de projeto. No debate procuramos ir além e pensar em outros lugares que também poderiam ser vistos como passagens, mesmo sem envolver deslocamentos físicos de pessoas. E então percebemos que a noção de heterotopia sugere uma série destes lugares.
Para entender como isto pode acontecer, vale a pena dar uma pincelada na definição desta noção, tal como proposta por Foucault em 1967, em seu texto intitulado Outros Espaços.
Em primeiro lugar, as heterotopias, juntamente com as utopias, definem-se como instâncias que fogem da normalidade. Elas não fazem parte dos lugares comuns que predominam em nossas sociedades, não se confundindo com locais de trabalho, com a maioria das instituições públicas, e com espaços comuns de circulação, entre outros. As heterotopias, tanto quanto as utopias, estão menos submetidas às formas de poder que produzem e regulam a vida social na maior parte dos espaços urbanos.
Em segundo lugar, e em outro sentido, as heterotopias diferem radicalmente das utopias. As utopias evocam situações ideais de sociedade, que são ou aperfeiçoamentos de sua condição atual, ou inversões desta condição – mas em ambos os casos, tratamos de projeções que não existem. As heterotopias são lugares que efetivamente existem, mesmo que sua presença esteja localizada, como vimos, nas franjas dos espaços urbanos mais frequentes.
Se esta definição aponta para uma grande diversidade de lugares heterotópicos, também podemos imaginar que boa parte deles relaciona-se com o tema das passagens, uma vez que envolve uma travessia do normal para o anormal, do comum para o incomum.
Os exemplos arrolados por Foucault incluem: o cemitério, lugar de passagem da vida para a morte; teatros, cinemas, livrarias, bibliotecas e zoológicos, como lugares que nos transportam para as histórias e ambientes contidos em seus interiores; circos, feiras de variedades e descampados nos arredores das cidades, como heterotopias de deriva, festa e lazer; jardins – e tapetes, já que Foucault observa que os tapetes são originários de representações de pequenos jardins – entendidos como lugares de contemplação, de representação da natureza e de suspensão de atividades produtivas; embarcações, vistas como espaços móveis constantemente submetidos a mudanças de paisagem.
Mas em que sentido podemos dizer que estes lugares envolvem passagens e podem ser vistos como temas para o EV? Algumas das características das heterotopias nos ajudam a responder a esta pergunta.
Podemos dizer, em primeiro lugar, que as heterotopias superpõem lugares em si mesmos incompatíveis: num mesmo cinema podemos assistir filmes diferentes, que não tem relação entre si e tampouco têm qualquer semelhança com o ambiente da sala – o mesmo vale para os histórias e idéias que habitam os livros de uma biblioteca e para os animais e ambientes que compõem um zoológico.
Em segundo lugar, podemos dizer que as heterotopias são vividas dentro de fatias de tempo que se definem como recortes absolutos em relação ao tempo tradicional ou normal – daí que as heterotopias são também heterocronismos. No jardim, por exemplo, somos transportados a um outro regime de tempo, relativo à contemplação das plantas, ao ritmo do andar desinteressado etc. Num velório ou cemitério, é toda a perspectiva temporal da vida que se extende diante de nós até tocar o outro lado e apontar para o seu término: o tempo da vida e da morte toma conta de nossos pensamentos, falas e sentimentos, mantendo em suspenso o ritmo da vida cotidiana.
Finalmente é preciso observar como operam os sistemas de aberturas e fechamentos que regulam a passagem que leva ao âmbito heterotópico. Como se configura a entrada e saída de um barco, onde estão suas bordas e como elas se relacionam com os lugares e acontecimentos que aparecem nos arredores? Como se dá a passagem à entrada da biblioteca? E assim por diante.
Com estas considerações, temos material de sobra para ampliar a reflexão sobre o tema das passagens. Vemos que elas não precisam envolver deslocamentos físicos, contanto que operem deslocamentos simbólicos, temporais, afetivos, entre outros.
Para os que quiserem se aprofundar na discussão, vale a pena citar o livro Heteretopias and the city – public space in a postcivil society (Dehaene e De Cauter 2008, London and New York: Routledge). O livro contém artigos escritos por vários pesquisadores inspirados pela noção de heterotopia. Pode ser encontrado  a partir de uma busca no site www.libgen.info.