Primeira Etapa: O conhecendo o conjunto
Construído em 1956, o edifício 14 bis, faz parte do projeto de Aron Kogan, engenheiro formado na Universidade Presbiteriana Mackenzie que atuou nas decadas de 50 e 60 no Brasil. O edifício é integrante do conjunto habitacional Santos Dumont formado por três edifícios, Demoiselle, Caravelle e o 14 Bis, que dentre todos é o maior e principal. A edificação se localiza no centro de São Paulo, no numero 235 da rua Paim e ficou conhecida como “treme-treme”, nome dado por moradores que diziam que o edifício lâmina tremia com o vento. Com seus 27,9 mil metros quadrados e 28 andares o predio de uso misto abriga em seu térreo pequenos comércios que movimentam a rua, e em seus 27 andares restantes residem 1680 moradores divididos em 520 unidades de apartamentos e quitinetes. Seus andares são divididos em 20 lotes, sendo que nas duas extremidades do edifício estão apartamentos de dois quartos e no centro 18 divisões de quitinetes de um dormitório, todos esses alimentados por 4 torres de elevadores. Essa configuração se repete em todos os andares exceto no 14° onde se encontra uma área aberta e comum destinada à convivência dos moradores.
O conjunto até 2016 foi conhecido pela forte presença de trafico de drogas em seus mais de 40 lotes invadidos, sendo que o primeiro andar do edifício Demoiselle era inteiramente tomado por traficantes de crack que negociavam a droga pelos corredores. Com projetos de revitalização do bairro e ações da polícia civil e militar a situação conseguiu ser revertida e as ocorrências e atuações em flagrante por trafico,roubo e violência, que aconteciam cerca de 3 vezes ao dia, passaram a ser consideradas raridades. Em 2017 o edifício Demoiselle passou por uma extensa reforma onde a fachada recebeu revestimento de pastilhas, seus andares ganharam mais de vinte câmeras de vigilância, e as paredes internas uma nova camada de tinta. Com isso o valor comercial do conjunto aumentou exponencialmente e a unidade residencial hoje chega a ser vendida pelo triplo do preço de cinco anos atrás, com valores podendo passar de 170 mil reais.
O conjunto, portanto, passou por boas e más fazes desde sua conclusão em 1956, idealizado sobre fortes preceitos da arquitetura moderna paulista vigente na época, o conjunto teve algumas de suas características mais importantes desfiguradas, como por exemplo a fluidez do conjunto que se pretendia ligar os edifícios mais no centro da quadra ao movimento da rua, foi impedida por ocupações não projetadas levando a configuração de uma rua sem saída, característica que ao invés de uni-lo a vida urbana, o isola, constituindo uma espécie de gueto. Apesar das dificuldades ligadas ao trafego e a insegurança pelas quais o conjunto passou, o conjunto apresentava, como se pode constatar durante a visita, uma pujante vida que se ocupava das calçadas e da rua única do conjunto, com destaque as crianças que brincavam de um lado para o outro, nas sombras dos edifícios.
Como reforça J. Jacobs em seu livro, vida e morte das grandes cidades, há muitas qualidades na vida na calçada, se nela, segundo a autora, forem garantidos um nível de diversidade. grande crítica dos dogmas da arquitetura moderna, será uma referência conceitual na discussão do papel do arquiteto x sociedade x crianças.
A partir do entendimento da historia do edifício, e da experiencia do seminário internacional ( Escola da Cidade 2019), o grupo se propõem a desenvolver uma pesquisa e posterior intervenção que tem como foco o térreo do conjunto (comércio, estacionamento, rua, calçada) e sua relação com as crianças que convivem nesse contexto.
Segunda Etapa: Conhecendo os habitantes
Durante essa segunda etapa nos preocupamos em iniciar um contato mais próximo com os frequentadores do térreo do Conjunto Santos Dumont. Queríamos entender o cotidiano das crianças daquele lugar, suas demandas e seus conflitos em relação ao espaço.
A maior questão discutida nessa fase foi de como nós, alunos de arquitetura não frequentadores daquele espaço, abordaríamos aquelas pessoas de maneira a não as espantar e nem gerar suspeitas. Fomos três vezes ao local durante a semana, cada uma das visitas foi realizada em um horário distinto para que tivéssemos uma maior compreensão da vida ali. O objetivo dessas visitas era descobrir o horário em que as crianças brincavam, a dinâmica daquele comércio e se havia algum representante com quem poderíamos falar. Conseguir essas informações foi mais difícil do que imaginávamos, nós claramente não éramos dali, as pessoas nos encaravam e suspeitavam da nossa presença. Essas visitas que visavam a interação direta com as pessoas tomaram o rumo da observação.
Descobrimos que o final da tarde, a partir das 17h, 18h há mais crianças, é o horário em que descem ou voltam da escola e ficam na rua brincando enquanto seus responsáveis param para conversar um pouco. As crianças se aglomeram no final da rua onde há uma espécie de largo. Os adultos, mesmo que não sejam seus pais, ficam de olho e gritam ao sinal de algum carro ou moto passando. O comércio também estava mais movimento durante esse período visto que, a maioria são bares. No período da manhã é quando geralmente ocorrem as cargas e descargas das mercadorias e que portanto, o número de veículos que entra e sai é maior. Percebemos também que mesmo quando há poucos carros passando as pessoas curiosamente respeitam as calçadas estreitas. Apesar dessas visitas terem gerado certos frutos, ainda não nos sentíamos confortáveis e bem-vindos no local.
Após essas primeiras abordagens, não tão satisfatórias em abordar as crianças, notamos que precisávamos de algo que instigasse a curiosidade delas para que elas viessem até nós e não o contrário. Na última quinta-feira nos reunimos às 17h30 no final da rua com 10m de folha, tintas e giz. Rapidamente as crianças começaram a se espreitar e a fazer perguntas e, enquanto brincavam e desenhavam iam naturalmente contando sobre a vida delas. O motivo pelo qual as pessoas respeitam as calçadas é porque com frequência moradores jogam coisas como embalagens vazias ou sacos plásticos com água lá de cima. As crianças antes costumavam se reunir com mais frequência no pátio – pequena área no térreo do edifício Caravelle onde já não passam carros – mas costumam ficar no final da rua desde que colocaram um pebolim no último bar. Esse tipo de informação foi surgindo naturalmente ao longo das brincadeiras e já não parecíamos mais tão suspeitos, as crianças perguntavam quando voltaríamos e os pais agradeciam a recreação.
Durante essa etapa encontramos através do desenho uma forma de estabelecer contato com as crianças. Fomos capazes de reunir informações e identificar conflitos como o lixo e a passagem de veículos, muito presentes nessa relação delas com a rua e acreditamos que mais uma visita dessas possa nos dar um norte de como intervir nesse espaço atendendo a demanda daquele público.
Terceira Etapa: Proposta de intervenção
Nessa terceira etapa do estúdio vertical decidimos recortar nossa área de trabalho permanecendo apenas com a rua interna e térreo comercial dos edifícios 14 Bis e Demoiselle. A área nos pareceu mais interessante devido ao acesso fácil e público. Para entender melhor esses espaços fizemos um levantamento de medidas e desenhos, e conversamos com algumas pessoas para saber o que era possível de fazer e o que não era.
Em um segundo exercício com as crianças levamos novamente materiais de desenho e uma folha grande em branco, e dessa vez levamos também folhas com a planta do prédio. Ao apresentar o último às crianças, elas dispararam: é uma barata! é um sorriso! um avião!. O que para nós arquitetos era tão claro e unânime, na imaginação das crianças podia ser uma infinidade de coisas. A partir dessa leitura que elas fizeram sobre o nosso desenho é que decidimos intervir.
Com o objetivo de colocá-las em contato com a representação do espaço em que convivem e de despertar um senso de comunidade e de pertencimento àquele local, decidimos sobrepor desenhos feitos a partir das ideias delas aos desenhos das plantas. A intenção é de, na próxima etapa, pintar esses desenhos nas portas dos comércios por meio de stencils e de que os pequenos ajudem na produção dos mesmos. Sendo as ideias de desenho das próprias crianças, acreditamos que esse terceiro exercício possa trazer reconhecimento do espaço e delas mesmas. Fazendo parte do processo temos a certeza de que valorizarão mais o trabalho e de que contribuirão para a sua preservação – com isso, a sensação de pertencimento.
Para essa entrega ensaiamos por meio de acetato e de montagens como essa intervenção ficaria. O intuito é apresentá-las aos comerciantes e convencê-los a deixar que suas portas sejam pintadas.
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