Trabalhadora voltando pra casa
Perguntando pra Deus “por que não tenho asas”?
Pra voar pelos ares e voltar para o lar
A real, ônibus cheio dói só de pensar
Na bolsa um livro novo, não tem condição
Leitura na multidão, frustração
Nove horas no trabalho é bem mais suave
Que as duas horas balançando na condução
O dia inteiro dando duro, uma volta cansativa
Ainda desce bem no ponto mais escuro
A violência subindo de nível
Do receio da solidão, a sensação da mulher é horrível
Ela caminha, semblante preocupado
Escuridão, o bar da rua se encontra fechado
Quanto vale uma vida? Pensa no seu pivete
Na bolsa tem a bíblia, também tem canivete
Faça o bem que o bem vai te merecer
Mas ela sabe que o pior pode acontecer
Na madrugada pelo bairro impera o sono
Holofote quebrado, matagal, abandono
Se ela atrasa, seu dinheiro será descontado
E a firma ao menos oferece um ônibus fretado
E sua mente quente como brasa
Só vai relaxar quando entrar dentro de casaA volta pra casa, Rincón Sapiência, 2017
As motivações que norteiam este trabalho estão em Carapicuíba, cidade da zona oeste da Grande São Paulo, na década de 90 e 00. Na experiência de autoconstrução, da família migrante, operária. Na observação da vivência de tias silenciadas, que não puderam mais trabalhar após o casamento, que aguentavam – e aguentam – caladas, anos de violência doméstica, incrementada com uma série de cobranças religiosas e morais que exigem que elas resistam em nome da família. Parte deste trabalho também é uma reflexão sobre o assédio vivenciado nos espaços públicos desde os 10 anos de idade, do sentimento de medo experimentado a uma simples ida ao mercado, da necessidade de desenvolver estratégias para pensar repostas rápidas para os assédios que certamente ouviria ao pisar na rua. Do medo do transporte público.
Reconheço, contudo que, apesar das tensões de classe e gênero que enfrentei e enfrento, tenho muitos privilégios dentro da estrutura da sociedade brasileira. Sou branca em um país racista onde um jovem negro morre a cada 23 minutos . Tenho uma família nuclear estruturada e um pai presente em um país machista onde em 20% das certidões de nascimento não consta o nome do pai . Fui bolsista por seis anos em uma faculdade de elite, que não aceita programas de inclusão como o Prouni ou o Fies . Por ter plena consciência de que muito da minha trajetória está rodeada de privilégios e não apenas de méritos é que decidi encarar as mazelas deste tema. É partir deste lugar social que decidi tentar abranger ao máximo as questões que envolvem as diversas manifestações do feminino no espaço urbano não apenas dando voz, mas construindo com aquelas a quem tudo é negado como premissa.
Em dezembro de 2016, constatei que tudo o que vinha aprendendo sobre feminismo nos últimos tempos não se aplicava apenas ao dia-a-dia ou às relações pessoais, mas se traduzia em uma metodologia de luta, transversal e que poderia ser aplicada a todo e qualquer debate. Intelectuais como Angela Davis, Judith Butler, Carolina de Jesus, Márcia Tiburi, Simone de Beauvoir começaram a povoar minhas leituras diárias e passei a pensar então como poderia aplicar essa metodologia para enxergar, problematizar e contribuir com o campo que escolhi para atuar profissionalmente: a arquitetura e o urbanismo. Fui desbravando um caminho para mim desconhecido nos estudos da arquitetura e descobri nomes como Zaida Muxi, Ana Falú, Paula Santoro, Ana Gabriela Godinho, Franziska Ullmann, entre outras e entendi que a relação espaço público e gênero poderia vir a ser um tema não só interessante como fundamental para um trabalho de conclusão de curso.
Assim, deu-se a largada a uma busca por referências, discussões e palestras sobre esse tema que, infelizmente, não foi explorado ou sequer citado ao longo dos meus cinco anos de graduação. No percurso, me deparei com arquitetas e antropólogas, que denunciam o apagamento de outras arquitetas na história da arquitetura: Silvana Rubino falando de Charlotte Perriand; Ana Gabriela Godinho, com o livro Arquitetas e Arquiteturas na América Latina do século XX , o blog e página no Facebook Un día, una arquitecta, idealizado por Zaida Muxí, que se propõe a divulgar a história de uma arquiteta por dia e a iniciativa da revista Arquitetas Invisíveis, de jovens alunas da faculdade de arquitetura e urbanismo da UnB – Universidade de Brasília, entre outras.
O primeiro semestre de 2017 começou com a aula intitulada Estúdio Vertical, com o tema Modos de Pensar, Modos de fazer. Formamos, então, um grupo com cinco integrantes e nos questionamos se o espaço público é, de fato, público. Quem são as pessoas que conseguem usufruir plenamente desse espaço?A partir das primeiras leituras, fomos nos dando conta de que os espaços públicos são masculinos, feitos por homens e para homens e que essa configuração pode estar relacionada com a desigualdade na apropriação dos espaços públicos por homens e mulheres.
Voltamo-nos para a forma que a arquitetura e o urbanismo nos são ensinados na faculdade de arquitetura: majoritariamente por homens brancos, heterossexuais, cisgênero , de classe média alta, sob os preceitos da escola modernista de São Paulo, que vem da europeia, ambas compostas majoritariamente por homens, heterossexuais, cis e de classe média alta. Essa constatação não significa que homens nessas condições não estejam aptos a projetar espaços públicos, ela só levanta o questionamento: “será que a cidade projetada quase exclusivamente por esses indivíduos ou sob a perspectiva deles, contemplará as pessoas que não estão nesse grupo social, racial e não pertencem ao “gênero dominante””?
Desconfiávamos que não, a partir de nossas vivências diárias e decidimos construir um trabalho que permitisse o embasamento dessa reflexão. Mulheres sejam elas brancas ou negras, cis ou trans, ricas ou pobres, não são contempladas. E este não pertencimento se agrava em função das camadas de opressão a que estão submetidas esta mulher: quanto mais negra, mais pobre, mais periférica, maior ainda será seu não pertencimento. Ou seja, essa cidade não nos acolhe, não nos protege e não nos convida a nela permanecer.
Essa primeira fase do nosso trabalho resultou em um levantamento bibliográfico do que foi encontrado sobre o assunto e uma cartilha intitulada Como Projetar a Partir da Perspectiva de Gênero, o conjunto leva o nome O Feminino em São Paulo e compõe parte do Acervo da 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo.
No semestre seguinte, sob o tema do Estúdio Vertical, Reconhecer São Paulo e sob a orientação de Lígia Miranda, o grupo continuou o trabalho, com o intuito de entender a cidade a partir das mulheres que aqui moram ou transitam diariamente; somando à reflexão produzida no semestre anterior, entrevistas foram elaboradas com enfoque na relação dessas mulheres com a cidade, além de uma leitura de dados sobre a situação da mulher brasileira com a ajuda de uma série de novas leituras. Como estudantes de arquitetura e como representações do feminino no espaço público, percebemos que a arquitetura e o urbanismo ensinados sob essa perspectiva masculina, branca, própria do chamado “olhar do centro”, não nos contempla em toda a nossa pluralidade. É possível então projetar de forma a contemplar todos os grupos oprimidos e socialmente minoritários?
Algumas leituras clássicas também nos ajudaram neste processo. A ideia de direito à cidade discutida pelo francês Lefebvre e a discussão que faz o brasileiro Milton Santos sobre espaços de segregação e territorialidade foram de extrema importância, além, claro do conceito de interseccionalidade da estadunidense Angela Davis, que destaca a importância de se articular raça, gênero e classe social para se combater as desigualdades intrínsecas ao capitalismo e reveladas em opressões sistêmicas como as provocadas pelo racismo e pelo patriarcado.
Para responder a essa e outras perguntas que surgiram durante o processo de concepção deste trabalho, assumimos uma premissa didática para esclarecer até que ponto existe diferenças na forma em que homens e mulheres vivenciam e pensam a cidade. E que há outros olhares possíveis a partir dos quais podemos projetar, de forma a contemplar mais pessoas para além do “homem universal moderno” (branco, cisgêneros, heterossexual).
Além de sistematizar informações de políticas públicas com recorte de gênero no exterior e no Brasil e demonstrar como as mulheres e a comunidade LGBTI estão perdendo direitos e voz nesses tempos de golpe.
Como produto, produzimos este livro que conta com um levantamento bibliográfico e uma conceitualização dos termos que povoam este debate; um questionário direcionado às mulheres que tem como objetivo entender a relação delas com a cidade e uma cartilha para auxiliar em projetos de urbanismo participativo com enfoque na questão de gênero. O questionário e a cartilha podem ser destacados do conjunto e foram concebidos para serem replicados. Temos com isso a intenção de fomentar a discussão acerca deste tema tão pertinente, sensibilizar planejadoras e planejadores e estudantes de arquitetura e urbanismo e, ainda, ajudar no trabalho de informar a comunidade sobre o direito básico à cidade.
https://issuu.com/oliveiraheloisa/docs/espacopublicopraquem_caderno
https://issuu.com/oliveiraheloisa/docs/espacopublicopraquem_cartilha
https://issuu.com/oliveiraheloisa/docs/espacopublicopraquem_questionario
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