O ESPAÇO DO COTIDIANO | Grupo 03

fla·nar
v.i.Caminhar sem destino certo.
Andar sem rumo, de modo ocioso, sem coisas com as quais se preocupar

Dialogando com a transurbância de Francesco Careri, a prática urbana do devaneio rompe, em certa medida, com as linhas exatas e trajetos desenhados que servem à lógica da cidade grande e explora outras percepções do tempo. Do ponto de vista da mitologia grega, se a vida urbana pertence ao tempo chronos – contado, ritmado, linear – seu contraponto é o tempo kairós, da percepção, do subjetivo, não-linear.
A experiência sensorial, subjetiva, é fundamental para a prática arquitetônica. O trabalho se debruça sobre essas questões e propõe um formato investigativo e experimental, de manipulação do espaço e do movimento, através da escala 1:1 e de modelos físicos. Exploração da materialidade, da espacialidade e da arquitetura como campo do subjetivo, da contemplação, do respirar, em uma das ruas peatonais mais movimentadas do centro histórico de São Paulo: Barão de Itapetininga.

andre arena, aristide françois, lia forti, marina dahmer, rafaella lupino

ev16s2_g03_sintese

são paulo

São Paulo, organismo complexo, estruturado a partir da lógica de produção do capital. A ordenação de suas atividades desenha-se a partir de um “esquema temporal fixo e supra-subjetivo”. Suas relações nas mais variadas escalas e profundidades são conexas por linhas de direção, exatas. A técnica da vida na cidade grande, marcada pela impiedosa exatidão temporal, cria condições psicológicas de superficialidade da consciência. O ritmo, o estímulo imagético constante, o percurso cotidiano repetido operam na vida anímica o lugar mais consciente e transparente da alma, no contra-fluxo da subjetividade. Não só, se corpo, percepção, pensamento e consciência são articulados pelos sentidos, a cidade também cumpre um papel de aniquilação e negligência do campo subjetivo a partir do privilégio da visão (e a consequente supressão de outros sentidos), desenhando a situação das cidades contemporâneas: onde impera o isolamento e a alienação e seus habitantes agem e reagem sobretudo a partir do entendimento, atuando no patamar do objetivo e da impessoalidade. O corpo que transita na urbe é um corpo exato, calcado na racionalidade e veste uma roupagem blasé. Que não se propõe ao devaneio, a livre observação e apreensão das belezas que a cidade oferece. Não se permite sentir, dar vazão a outros sentidos e sentimentos que não os cotidianos. “A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos. Elas aparecem ao blasé em uma tonalidade acinzentada e baça, e não vale a pena preferir umas em relação às outras.” (SIMMEL, 1903)

sobre barão de itapetininga

Entre tantos lugares e não lugares da cidade convulsionada, um oferta a máxima da objetividade, alienação e mecanização do movimento, somatizando com a problemática da memória do centro de São Paulo. A Rua Barão de Itapetininga é eixo que costura. Nasce na cidade velha e morre na cidade nova. É via que, em toda sua extensão mas principalmente no encontro com seus afluentes, é afogada visualmente e espacialmente por ocupações formais e informais
letreiros,
sacos de lixo,
ambulantes
vende-se compra-se
ouro da barão
mp3
aplicamos películas de vidro
almoço marmitex viagem 5 reais
carregadores fones baterias
livros universitários
desconto 20%
dia dos namorados
salgados a partir de 2 reais

Distribuídos pelo percurso – ao mesmo tempo linear e tortuoso, desenhado pelas barreiras de ambulantes e buracos esculpidos pela chuva. (Des)ordenados também no limite da calha, nas fachadas coloridas e luminosas. O olhar de quem passa por ali no cotidiano é ritmado, passageiro. Ora voltado para o horizonte, ora para o chão, examinando depressa as irregularidades nas pedras portuguesas e quem vem no contra-fluxo. O bombardeio visual das fachadas às vezes provoca um efeito oposto ao que se propõe.

Quando cruza a Barão com a Dom José de Barros, gravado numa placa de ferro sobre o chão de pedra portuguesa:
“uma cidade menos dura
menos fria
menos materialista”
o desejo por outra cidade, desapercebido.

estratégia de intervenção

A partir da compreensão do tempo que rege cidade e incide sobre o tempo de seus habitantes e do recorte territorial, propõe-se como objetivo do trabalho subverter a lógica da mecanização do corpo, da aniquilação dos sentidos, a partir de uma tradução do que se explora na teoria para o plano material, da concretude, tridimensional. A priori, a estratégia do exercício de investigação e experimentação se dividiu em três etapas: ruptura, semântica e sintaxe. Cada substantivo guiaria uma intervenção diferente na Barão de Itapetininga.
ruptura

substantivo feminino
1. ação ou efeito de romper(-se); rompimento, fratura, quebradura.
2. interrupção de continuidade; divisão; corte.

semântica

substantivo feminino
1.estudo sincrônico ou diacrônico da significação como parte dos sistemas das línguas naturais.

2.num sistema linguístico, o componente do sentido das palavras e da interpretação das sentenças e dos enunciados.

sintaxe

substantivo feminino
1. parte da gramática que estuda as palavras enquanto elementos de uma frase, as suas relações de concordância, de subordinação e de ordem.
2. componente do sistema linguístico que determina as relações formais que interligam os constituintes da sentença, atribuindo-lhe uma estrutura.

intervenção 1: a suposta ruptura

A associação mais óbvia para ruptura no espaço é a barreira, o rasgo físico. Como um muro, com materialidade densa, concreta. Mas aqui, ruptura significa também (e principalmente) ruptura de um tempo à serviço da técnica da vida na cidade contemporânea, que não interessa à vida anímica de seus habitantes, e da mecanização do andar.
Tensiona-se um pano branco de tecido leve (que fantasia por algum elemento de neutralidade na paisagem intrincada da via) entre dois postes de luz no cruzamento principal da rua peatonal, onde se encontra a gravura do desejo. Um plano vertical forma um elemento surpresa no cenário, e desdobra-se em sombras variadas no plano horizontal.
Desperta interesse as interações e novos espaços que o tecido de 30 metros tensionado à sua maneira gera, tanto no processo, quanto pós-finalização. Os integrantes de uma “comunidade” pré-estabelecida de informais, receosos a princípio, tornaram-se parte do processo, auxiliando na montagem e gozando das sombras geradas sob o pretexto de que seria bom para o comércio.
Transeuntes param para observar e tocar na faixa, seguem a sombra linear, skatistas a usam como obstáculo.

um outro olhar sobre a barão

No limite, concluiu-se, toda e qualquer intervenção seria necessariamente uma ruptura, uma ressignificação e uma reconexão. Todas ao mesmo tempo. Fez-se necessária uma revisitação àquele lugar, uma outra abordagem de análise que se pautasse pelo subjetivo, e não por mapeamentos de sombra, fluxo, permanência, efemeridades sobre uma planta numa tela de computador.

Registro de percepção simples: passo a passo

1. Entregue um gravador a um transeunte
2. Peça que fale ao microfone o que quiser ao longo do percurso.
3. Transcreva o áudio

Aqui, os dois transeuntes são estudantes de arquitetura que tem relações mais ou menos cotidianas com o eixo que liga a Praça da República com a Praça Ramos.

Transeunte 1
A primeira vez que eu me proponho a gravar um percurso que normalmente eu fico apreensivo ao fazer isso, mas hoje em dia todo mundo está com o celular na mão, escrevendo, gravando, tuitando, postando. Então tá tranquilo eu gravar também.

Virando a rua da Barão você já tem uma trilha sonora toda própria, você pode andar tranquilamente que apesar de cheio o espaço é grande, os postes dividem bem no meio, é engraçado que os balcões começam bem em cima e parece que não tem ninguém neles. É engraçado que realmente tá todo mundo falando no celular, isto me sentir muito menos estranho gravando.

Tem uma corrente de vento forte aqui. Passou agora uma pessoa muito parecida com uma que eu conheço, acho que isso é normal aqui.

É bom porque eu já precisava para a Galeria do Rock para ver se tava aberto, o caminho já é útil e bem normal. É muita letra aqui, desde advogado, atestado, ouro, Mcdonalds, ouro da Barão, SDX, dom J barros, é calça, é bolsa, é cachecol.

Cara, trocaram estes tapumes, daqui da esquina com a Dom José da pra ver um edifício com um pixo muito louco, é aquele que fica la no largo, é uma ocupação eu acho, um prediozão tomado pelo pixo e com janelas de vidro que cobrem ele, então fica só uma tipografia de pixo preenchendo assim bem o final da rua, é muito louco.

E só essas letras gráficas “sex shop”, Itaú. Chegando na galeria, vamos ver se está aberta… Centro Comercial Presidente, Mendes Jr Engenharia s/a., vendo logo a logo, Bradesco, pixo, pixo, pixo, tem uma luz, uma só e quatro câmeras, mas um monte de pixo. 77 Galeria Rua Monteiro, ai a galeria, entrando, ih caralho, tá fechada. Aqui tá mais quente e menos vento, mas acho que é isso, agora é a volta então, o vento está a favor, no fundo é só parede.

Acho que eu poderia pegar um atalho e mudar o percurso se vocês não se importam. Piercing, tattoo, c&a, Bradesco, Itau, voltando para a rua, muita gente, muito som, espero que vocês escutem tudo o que gravei. Lanchonete city, está todo mundo com a boca no celular ninguém me olha estranho, ninguém me acha estranho, isto é ótimo. É cordão, é cd, é meia, é gorro, distopia, as vezes tudo é fruto de sua imaginação, é chapéu, boina, cinto, calçado, nas ruas transversais não sei porque, parece mais calmo, parece até convidativo porque as pessoas ficam, ainda não vi ninguém nos balcões das janelas, não vi ninguém la dentro. Claro, boticário saraiva, yakissoba do lee, tem 3 casinhas mais baixas, 3 arvores para 5 postes, cerca de uns 100 metros, o chão cheio de buraco, só pode ser causado por tênis furado e chinelo havaianas, um orelhão, ainda bem que eles ainda existem, acabaram de passar 3 bruxas bem grandes e um saci.

Maluco alto, leve 5 pague 4 embalagens, é isso, fim do dia.

Transeunte 2

Não sei se isso vai dar certo, tenho minhas dúvidas porque meu microfone não é tão bom. Estou passando pela Nova Barão então a gente pode sincronizar no áudio. Eu gosto das coisas da Nova Barão lá em cima, aquele mural mas acho que vocês não vão alcançar lá, não sei mas fica o registro, eu gosto daquilo. Acho que tem uma coisa como de andar no metrô, como se o metrô fosse mais largo, daí você vai passando mas tem essas pessoas no meio, eu acho divertido.

É uma coisa difícil de marcar porque elas ficam mudando de lugar, obviamente. aqui na esquina em frente a ocupação tem um guarda corpo no prédio, acho divertido não ter porta mas ter um guarda corpo. Eu não sei muito bem para que serve, mas acho divertido.

Acho bem impressionante a quantidade de galerias que tem e agente normalmente passa batido por elas. Tem esse prédio do Ita e uma outra galeria ali na frente que não consigo ler o nome dela, e tem essas entradinhas maravilhosas tipo do prédio Jaraguá que eu gosto muito.

Mas de outra maneira eu não sei, aqui ainda é uma rua que consegue manter uma relação da fachada do terreno com a fachada do edifício. A São Bento é uma rua maravilhosa porque ela não mantém nenhuma, mas essa aqui, enfim. Agora eu to passando na frente do Itaú, que de dia é uma merda mas de noite é incrível. Da pra ver lá dentro a planta e a escada, eu não consigo ver agora, mas eu lembro dela e ela tá ali, eu sei que ela tá ali.

Os outro prédios que eu to passando agora são meio ok, mas pensando bem no chão tem uma quantidade absurda de boca de lobo né, não sei, não tenho muita certeza. Monte de comércio, tem esse prédio da esquina da Dom José de Barros que é ok, tem um cara tocando música alto agora. Depois disso tem esses predinhos que ainda não verticalizaram, eu acho uma pena pessoalmente mas tem claro o do Apfel que é muito incrível.

Eu não sei eu tenho passado nos bueiros e eles vão mudando também, tem varias versões. acho que eles vão mudando pois um é agua, outro é luz, enfim, não sei. Eu já tô no prédio do Niemeyer, na Galeria Califórnia. Eu não sei se eu fiz isso muito rápido mas como disse, acho que talvez eu tenha passado demais por aqui já. Esse edifício do Niemeyer é ok né, é ok. Aqui na frente da Galeria Califórnia tem sim esse edifício que de baixo se você olhar só na parte de baixo, no térreo ele parece um lugar qualquer mas se você olha para cima tem uma construção neoclássica, até interessante. E aqui enfim, cheguei no final, já tô na Praça da República, mas tamo aqui. Mas o que eu acho mais interessante dela é essa conexão que ela faz de você juntar a cidade nova com a cidade velha. a Barão de Itapetininga é quase que uma promessa dessa nova cidade. Ela conecta a Praça do Patriarca com a Praça da República, então eu acho que nela isso é muito interessante porque, enfim, é o que formou São Paulo desde então, e depois se agente continuasse numa linha reta quase agente sairia no Largo do Arouche, então ela organiza uma série de coisas que eu acho muito interessante.

Acho que minha relação com ela é muito mais teórica do que emocional. Eu tenho evitado passar por ela, não sei, eu acho ela meio bizarra, agora eu venho pela 7 de abril que acho mais divertida, mas é uma questão pessoal. Acho que nada do que eu disse vocês vão ter deixado passar.

intervenção 2: cicatriz do olhar
+ análise

A intervenção de conclusão do trabalho desponta a partir de devaneios, gravadores e entrevistas na Barão e do resgate daquilo que foi proposto como exercício (investigação e experimentação por meio da tradução do que é teórico para o material): imprime-se a subjetividade do olhar a partir de uma fita preta que percorre o plano tridimensional que forma a via, sugerindo a retomada da memória e de outros pontos de vista interessantes – e que não são percebidos. A linha sugere outras relações da visão com as galerias, as barreiras, as empenas, os edifícios históricos, quase como um rasgo nos planos verticais e horizontais.

A interação de quem ocupa – mesmo que momentaneamente – aquele lugar com a intervenção é percebida desde o processo de montagem. Mesmo quando não completa, a pausa para perceber e questionar acontecia de maneira recorrente e a interpretação do que estava impresso no chão e nas fachadas variava: de percurso que levaria às galerias, demarcação no terreno, barreira à sugestão para o olhar. Percebeu-se pela primeira vez o que a placa de ferro sobre o chão de pedra portuguesa queria dizer, os lambes das fachadas, as empenas cegas de concreto e alguns dos respiros presentes na paisagem. Rompe com o tempo e espaço, ressignifica elementos presentes e pouco percebidos na via e reconecta o percurso entre galerias ou não.

material utilizado
330 metros de fita adevisa multiuso tectape 48mm

QUARTA ETAPA

dsc_0886g03_apresentacao