g2 – de dentro e através do mutirão

1 ETAPA

A faixa de território selecionada que faz parte do Distrito Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade de São Paulo, é ocupada por três modelos distintos de moradia das classes populares, que se estabeleceram a partir da década de 1970 atreladas ao movimento de reestruturação dos grandes centros urbanos brasileiros, marcado pela intensificação da urbanização em direção às periferias. Os modelos de habitação identificados nessa faixa são consequências deste movimento, com o crescimento de formas de habitação precárias – a construção em larga escala de conjuntos habitacionais padronizados e o crescimento das ocupações irregulares, às margens da cidade formal.

O distrito de Cidade Tiradentes em São Paulo representa um importante espaço de estudo para a reflexão acerca da produção de habitação na cidade, sobretudo no que diz respeito à consolidação de modelos de habitação de interesse social. A partir da década de 1980, o distrito da região Leste recebeu uma série de empreendimentos da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, a COHAB, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, a CDHU, e, ainda, de empreiteiras particulares que se valeram de financiamentos do Banco Nacional de Habitação, BNH, processo de periferização que ocorre simultaneamente nos grandes centros urbanos brasileiros a partir dos anos 1970.
Atualmente, o distrito contempla o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, sendo a maior parte desse número construída no período identificado a cima.

No recorte escolhido, a Rua Francisco José Alves, convivem esses dois tipos de ocupação, o que faz dele um espécie de amostra da ocupação quase homogênea do distrito e das periferias de grandes cidades em geral. De um lado, um grande lote é ocupado por 26 blocos de edifícios da CDHU conformados por 1200 unidades. Do outro lado do córrego, predomina a ocupação irregular, marginal, marcada pela autoconstrução de casas unifamiliares, que, vale a pena ressaltar, representa o modelo de construção de habitação predominante na cidade de São Paulo. A particularidade desse recorte está na presença, entre esses dois tipos de ocupação citados, de um modelo contra-hegemônico de produção habitacional, alheio à lógica capitalista dos grandes empreendimentos e à perpetuação da ocupação informal. Esse modelo é representado pela obra em andamento dos Conjuntos Florestan Fernandes e José Maria Amaral, amparados por um processo autogestionário a partir da organização de um coletivo no Movimento Sem Terra Leste 1 e empreendidos sob regime de mutirão aos finais de semana.
Ainda que a forma final dos oito edifícios que compõem os Condomínios FFJMA não guarde grandes diferenças ao modelo construtivo “tradicional” observado no conjunto da CDHU, são percebidos um pequeno aumento na área das unidades e possivelmente uma disposição diferente das áreas comuns que ainda estão em obras. Talvez a grande diferença material entre esses modelos resida no centro comunitário presente no conjunto autogestionário, um equipamento que extrapola a função meramente habitacional do empreendimento e abre espaço para a comunidade do entorno, configurando um sentido mais público no interior do lote privado de posse das famílias futuras moradoras responsáveis, tanto pela obra, quanto pela gestão desse espaço. Apesar disso, a grande diferença entre os dois tipos de ocupação é observada no momento de construção e na pós-ocupação: o mutirante, ao apropriar-se de um processo de trabalho coletivizado em prol de um conjunto organizado, é parte e reconhece nele um processo emancipador, politizante e criador de uma consciência de classe. Já organizado, este grupo mobiliza-se para garantir direitos que vão além da moradia digna, o direito à cidade. Este processo pode envolver e trazer conquistas para a população local, para além dos futuros moradores dos conjuntos: as ruas asfaltadas, os pontos e linhas de ônibus, saneamento básico, rede elétrica, infraestrutura, etc., o que ajuda a configurar no entorno uma centralidade autônoma, com características próprias e dinâmicas outras, que não aquelas tradicionalmente estabelecidas.

 

2 ETAPA

 

 

 

 

 

CANTEIRO DE OBRAS

Quais os ganhos nas relações de trabalho nesse modelo de canteiro (mutirão autogerido)?

O modelo de produção da construção civil apresenta uma discrepância em relação ao desenvolvimento industrial de outros setores, mantendo-se o processo manufatureiro, segundo a perspectiva de Sergio Ferro, uma condição atrasada tecnologicamente e, ao mesmo tempo, contemporânea economicamente, vide o enorme fluxo de capital e mão-de-obra no setor. A manutenção da manufatura no canteiro de obras, caracterizada pelo grande volume de mão-de-obra e pouco maquinário, atende à manutenção e/ou aprofundamento da acumulação capitalista, a medida que garante a maior lucro que os setores industriais avançados, fruto da exploração do trabalho humano e extração da mais-valia.

A arquitetura, enquanto desenho que orienta o processo produtivo, cumpre um importante papel na consolidação e manutenção desse modo de produção, segundo a perspectiva adotada por Ferro em O canteiro e o desenho. O desenho do arquiteto, no canteiro, tem o poder de designar para cada um sua tarefa, estabelecendo o controle da produção, marcada pela separação entre o trabalho intelectual (centralização da concepção na figura do arquiteto) e o braçal – “o trabalho dos trabalhadores parcelados” – alienado. Esta separação do desenho arquitetônico do canteiro, segundo o autor, remete ao estabelecimento do Renascimento no século XV, quando instaura-se uma nova função do arquiteto: de organização de um canteiro favorável ao capital; processo que se intensifica ao longo de séculos, com a inserção de novas técnicas de projeto e o maior detalhamento do projeto – que busca “imitar” os avanços da Segunda Revolução Industrial, que garantem maior controle sobre a obra e centralização da concepção arquitetônica. A inserção de novos materiais e técnicas construtivas na Arquitetura Moderna, sem avanço tecnológico, é reação às tecnologias dominadas pelos operários (pedra e madeira) – não objetivas e não planejadas, distanciando o canteiro do “saber fazer” popular.

 

MUTIRÃO AUTOGERIDO

O mutirão autogerido se coloca como modelo alternativo à hegemonia da produção capitalista do canteiro “tradicional” da construção civil – pró-mercado. Gestado na articulação entre Movimentos de Moradia e Reforma Urbana e as Assessorias Técnicas, também de formulações de acadêmicos, a partir da década de 1980, propõe um novo modo de produção no canteiro de obras, que se difere tanto da alienação do trabalho assalariado no canteiro da produção capitalista, quanto da autoconstrução – “trabalho destituído de invenção”. A produção neste canteiro, sem patrões e alienação, é assistida por arquitetos, que estabelecem novas relações de trabalho no contato com os movimentos e famílias mutirantes, no intuito de “extrair dos poucos recursos o máximo arquitetônico”. Segundo Arantes: “no mutirão não é possível aumentar a produtividade através da ampliação da exploração, com precarização, horas extras, demissões, mas somente através da invenção de novos procedimentos e técnicas construtivas”.

A coletivização do processo, pretendida por este modelo de produção, se inicia nas etapas posteriores a obra. Na busca por terrenos disponíveis na cidade; na elaboração do projeto, desenvolvido a partir do diálogo com as assessorias técnicas e da apropriação do projeto pelos mutirantes; e, na sequência, pós conquista da terra, na organização destes indivíduos/famílias em equipes (comissões) para a gestão e trabalho na obra. Essas comissões se organizam em três núcleos: execução dos trabalhos no canteiro (alvenaria, laje, argamassa, elétrica, hidráulica, carpintaria, ferragem e serralheria); administração (apontadoria, almoxarifado, comissão de compras e coordenação financeira); e apoio (enfermaria, segurança, prevenção de acidentes, cozinha comunitária, comunicação e eventos).

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sergio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões O canteiro e o desenho no mutirão autogerido, p.189

 

MINHA CASA MINHA VIDA – ENTIDADES

Quais os problemas e virtudes do programa de produção habitacional a partir das entidades/movimento em nível federal?

O programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades é uma modalidade contemplada pela pelo programa federal de produção habitacional de interesse social, instituído para atender a demanda de moradia da população de baixa renda em áreas urbanas por meio de concessões de financiamento a coletivos organizados em associações pelas Entidades Organizadoras, a partir de recursos oriundos do Orçamento Geral da União (OGU) direcionados ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS). Instituído por decreto de lei federal em julho de 2009, o Programa tem como público alvo famílias, articuladas pelas Entidades Organizadoras, cuja renda mensal bruta seja de até R$ 1.395,00, com prioridade para “famílias residentes em áreas de risco ou insalubres ou que tenham sido desabrigadas; famílias com mulheres responsáveis pela unidade familiar; famílias de que façam parte pessoas com deficiência.”

O processo de seleção dos projetos ocorre em algumas etapas: 1. Apresentação – por parte da Entidade Organizadora – de uma proposta habitacional, junto a um comprovante de atendimento as exigências de habilitação; 2. Caixa Econômica Federal faz a validação da habilitação e realiza a pré-análise da proposta; 3. Ministério das Cidades classifica e seleciona projetos; 4. Entidade Organizadora apresenta os beneficiários do projeto à CAIXA a partir de uma documentação necessária; 5. CAIXA autoriza e aloca os recursos necessários, completando, assim, a contratação do Empreendimento pelo Programa.

Existem algumas possibilidades de regime de construção para desenvolvimento da obra dentro do Programa MCMV-E, divididos em dois grandes eixos, a autogestão e a cogestão. Dentro do que se entende como a primeira opção, é possível que a obra seja desenvolvida por quatro modalidades: autoconstrução pelos próprios beneficiários, mutirão ou autoajuda, autogestão, ou administração direta. Quando adota-se alguma das opções possíveis pela autogestão, é obrigatória a contratação de uma Assessoria Técnica que ampara as atividades de projeto e acompanha o processo no canteiro de obra durante todo o seu desenvolvimento. Nesses casos, a própria Entidade Organizadora contrata o serviço da assessoria.

Dentro do Programa MCMV, o Entidades recebe uma pequena parcela dos recursos – que não chega a 3%. Representa, ainda que incipientemente, uma produção contra-hegemônica, inclusive no interior do Programa, em que o grosso dos recursos vinculam-se à produção mercadológica, visando o lucro das empresas privadas.

Manual do Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades da Caixa Econômica Federal

 

MULHERES NA OBRA

O modo de produção em mutirão autogerido, comparado ao modelo tradicional da construção civil nacional, permite uma atuação mais protagonista das mulheres?

O protagonismo das mulheres no trabalho no canteiro e das comissões dos mutirões autogeridos é notável desde a primeira aproximação com esse modo de produção. Configura-se ali um espaço de empoderamento muito forte, a partir da apropriação destas mulheres em relação a todos os aspectos e etapas da produção, em que a participação no mutirão se desdobra, na sequência, em lutas por autonomia em relação à opressão de gênero e a discussão da divisão sexual do trabalho. Diante da produção hegemônica da construção civil, predominantemente dominada pela mão-de-obra masculina, a presença das mulheres no mutirões ganha especial força.

No MCMV (comum e Entidades) a preferência pelas mulheres para titularidade dos apartamentos (chefes de família) tem uma forte relação direta com o caráter emancipatório  e o grande compromisso destas mulheres durante todo o processo – desde a participação nos grupos de origem (a maioria deles oriundos das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica), nas ocupações de terra, nas discussões de projeto, até o trabalho nas comissões e canteiro de obras – são, em parte, traduzidas em lei. Essa participação efetiva das mulheres deve ser reconhecida como importante contraponto à insuficiente dicotomia homem provedor/mulher cuidadora, sobretudo ao observar a presença – extremamente minotária – das mulheres na construção civil, onde se concentram nas atividades menos reconhecidas e valorizadas.

 

ASSESSORIAS TÉCNICAS

O surgimento das Assessorias Técnicas ocorre em paralelo à história e desenvolvimento dos Movimentos de Moradia, surgidos na década de 1980 em meio aos movimentos pela redemocratização, e da constituição do mutirão autogerido enquanto modelo de produção de habitação de interesse social. Neste sentido, o contexto da segunda metade da década de 1970 “com a possibilidade de novas formas de ação política” deve ser observado como antecedente da ação das Assessorias, quando “vários arquitetos e técnicos sociais começaram a trabalhar conjuntamente com a população organizada nas periferias autoconstruídas de São Paulo”. Em 1978 surge a primeira cooperativa de arquitetos, vinculada ao SASP (Sindicato de Arquitetos de São Paulo), que visava trabalhar junto a população das favelas, iniciativa que se viu frustrada pela “impossibilidade de remuneração pela população favelada e o não atendimento da demanda desta”. Ao longo dos anos 1980 ocorrem uma série de experiências pioneiras na articulação de arquitetos e técnicos e Movimentos de Moradia, entre os quais os Mutirões Vila Nova Cachoeirinha e Vila Comunitária de São Bernardo, vinculado ao Novo Sindicalismo do ABC. Em 1982 a formação do Laboratório de Habitação da Faculdade Belas Artes, e desdobramentos desta experiência em outras instituições de ensino, também são importantes antecedentes da institucionalização do modelo de produção de mutirão autogerido.

Em meio as primeiras vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores na década de 1980, a Gestão Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1993) marca um importante momento de institucionalização dos mutirões enquanto política pública, tornando uma possibilidade o trabalho de arquitetos junto aos Movimentos Populares. Baseada em uma aliança permamente entre poder público, movimentos de moradia e técnicos, que pode ser observada enquanto aliança de classe e aliança entre Estado e sociedade civil. A partir da chegada de Lula à presidência (2003) e da criação do Ministério das Cidades e aprovação do Estatuto das Cidades, indentidica-se uma inflexão “com o aumento dos investimentos públicos em HIS, em especial a nível federal através da Caixa Econômica Federal [financiadora]”.

A atividade dos arquitetos junto às Assessorias Técnicas apresenta uma grande distinção ao caráter autoritário do arquiteto e do desenho no canteiro tradicional. O processo participativo de discussão e formulação dos projetos junto às famílias e lideranças dos Movimentos marca uma diluição da autoria de projeto, distanciando-se da imagem de “gênio”  associada a figura do arquiteto; o acompanhamento de todo processo de obra e a presença do(s) arquiteto(s) no canteiro representam outra distinção do trabalho nas Assessorias, considerando que o processo produtivo interfere e informa o desenvolvimento do Projeto, com inúmeras alterações ocorridas ao longo da obra. O arquiteto aqui é militante político, comprometido aliado dos Movimentos Populares em uma parceria que não se baseia no lucro de nenhum dos lados, mas na construção comum, na maioria das vezes possibilitada pelos recursos públicos.

BUSKO, Jõao. Arquitetura: prática profissional e militância política. O caso das assessorias técnicas aos movimentos populares em São Paulo.

 

CIDADE TIRADENTES

A Cidade Tiradentes é um recorte territorial interessante pois reune-se ali um grande volume de produção de habitações de interesse social na Cidade de São Paulo, sobretudo a partir do movimento de expansão da cidade à periferia, processo intensificado a partir da década de 1980. Ali, além de uma gigantesca concentração de empreendimentos públicos de HIS, produzidos em diferentes épocas e por diferentes esferas do poder público e fontes de financiamento – municipal, estadual e federal, o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina; há uma enorme produção de moradias através da autoconstrução, grande parte delas localizadas em loteamentos irregulares, às margens da cidade formal; e concentram-se, em relação à cidade de São Paulo, grande parte dos empreendimentos de HIS produzidos por mutirões, sob diferentes programas de financiamento – do Programa Paulista de Mutirões da Gestão Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-93) até as experiências mais recentes, vinculadas ao Programa Federal MCMV-E.