G07 | Projeto Para Ocupação

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Introdução

A partir do trabalho desenvolvido durante o período de um ano que teve como tema a produção de habitação popular em sistema de mutirão autogestionário, o grupo segue com a pesquisa de habitação focando nos edifícios ocupados do centro.

Após um levantamento de diversos edifícios na região central, sendo esses ocupados, parcialmente ocupados, desapropriados e/ou com projetos de readequação já feitos, foi escolhido o edifício da Ocupação Mauá para a continuação da pesquisa.

Localizado na Rua Mauá, em frente à estação da Luz, o edifício apresenta características interessantes que devem ser incorporadas no exercício de projeto, tanto em termos de sua implantação, quanto em relação aos movimentos que ocupam o prédio e suas dinâmicas internas.

Adotou-se como ponto de partida a leitura de O trabalho, o capital, e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas cidades capitalistas avançadas escrito por David Harvey em 1982. O texto, escrito no olho da furacão das transformações intrínsecas à política-econômica neoliberal, serve para amparar o debate sobre as situações de ocupação uma vez que estabelece como parâmetro de disputa o capitalismo financeiro e a lógica da especulação imobiliária. Diferente do que ocorria no caso dos mutirões estudados anteriormente, inseridos no programa Minha Casa, Minha Vida na modalidade Entidades, que se dialogavam principalmente com o capital do setor da construção civil, inserido numa lógica de produção e lucro baseados na exploração da mais valia. Olhar para as ocupações no centro também passa por compreender a lógica especulativa e a financeirização da economia e as maneiros como estes fatores se relacionam às disputas pelo direito à cidade.

Leitura do contexto e território

A leitura do quadro de disputas estabelecidas no contexto do ambiente construído da cidade é uma ferramenta que ampara as discussões acerca do tema da produção de habitação de interesse social no contexto metropolitano. Produção enquanto construção de novas unidades e empreendimentos vinculada ao capital do setor secundário; também enquanto apropriação de espaços já existentes sujeitos à lógica de especulação do mercado imobiliário.

As ocupações no centro de São Paulo permitem analisar o enfrentamento e os limites da lógica de geração de HIS no espaço urbano consolidado em relação à atuação do mercado; e não da produção, uma vez que trata-se de uma região historicamente ocupada e disputada em função da disponibilidade de infraestrutura pública. Diante disso, a questão da habitacional ganha outros contornos, fazendo frente à lógica sistemática de construção em áreas periféricas que, em grande medida, constituem o lugar de morar das camadas populares nas metrópoles brasileiras, expandindo suas manchas urbanas.

Com um déficit habitacional de 5 milhões e 800 mil famílias no país, a pauta da habitação social foi recorrentemente pensada a partir de programas de aceleração do setor da construção civil. Na esfera federal, o caso mais recente e de maior abrangência é o programa Minha Casa, Minha Vida que, apesar de ter construído um número inédito de unidades desde 2009, em relação à programas e políticas anteriores, é “um programa que não foi feito para resolver o problema de habitação do país. […] foi feito para resolver o problema de liquidez das grandes construtoras depois da crise de 2008 (…)” (BOULOS, 2016). Desvinculados de uma ação efetiva de regulamentação fundiária, grande parte desses programas acaba por reafirmar o fundamento segregacionista de produção do espaço urbano e seu efeito real sobre o déficit habitacional inexiste.

Além disso, esses programas inserem seus beneficiários em uma lógica de financiamento que compromete uma parcela substancial da renda das famílias. Essa situação se agrava entre as famílias com renda de 0-3 salários mínimos, que compõem 70% do déficit habitacional do país. A predominância dessa faixa de renda nas ocupações revela a inviabilidade de inserir essa ampla parcela da população nos moldes dos programas como o MCMV (inclusive na parcela do programa dirigido às entidades – MCMV-E).

As ocupações, enquanto espaço de moradia e de pressão dos movimentos sociais que atuam no ambiente urbano, apresentam-se como lógica de habitação temporária com uma dinâmica interna de grande mobilidade entre os moradores. Diante disso, torna-se inviável concebê-las sob os parâmetros de unidades unifamiliares padronizadas e da propriedade privada, entendida como instrumento de fragmentação de classe e de inserção das camadas populares na lógica de financerização:

(…) a vulgarização da casa própria, individualizada, é vista como vantajosa para a classe capitalista porque ela estimula a fidelidade de pelo menos uma parte da classe operária ao princípio da propriedade privada, além de promover a ética de um “individualismo possessivo” bem como a fragmentação dessa classe em “classes de habitação” constituídas de inquilinos e proprietários. Isso dá a classe capitalista uma bem-vinda alavanca ideológica a ser usada contra a propriedade pública e exigência de nacionalização, porque é fácil dar a estas a aparência de que eles pretendem tirar dos trabalhadores as suas casas próprias. Entretanto, a maioria dos moradores de casa própria não é totalmente proprietária de suas casas. Em geral eles contraem empréstimos com base em uma hipoteca. Isto coloca o capital financeiro numa posição hegemônica com relação ao funcionamento do mercado de habitações, posição essa que de maneira alguma o desagrada. (…) O capital financeiro não controla somente a disponibilidade e a taxa de novos investimentos em habitação; controla também o trabalhador através de crônicas obstruções por dívidas. Um trabalhador hipotecado até o pescoço é, na maioria dos casos, um bastião da estabilidade social e os esquemas para promover a casa própria para a classe trabalhadora há muito tempo reconheceram este fato básico. (…) Seria muito difícil compreender a tensão política entre os subúrbios e as áreas centrais nos Estados Unidos sem reconhecer a fragmentação que ocorre dentro da classe trabalhadora, à medida que parte dela ingressa na casa própria e se torna profundamente preocupada com a preservação e se possível a elevação de seu justo valor. (HARVEY, p.13-14)

Além das questões do acesso à propriedade privada, as ocupações permitem analisar sob outra ótica os conflitos entre capital e trabalho e entre trabalho e moradia dentro do contexto de desarticulação do sistema casa-trabalho fabril (pós segunda revolução industrial), decorrente da aceleração do setor terciário nas metrópoles em substituição à produção industrial, e a vinculação das economias à lógica do rentismo.

Trabalhar e morar se articulam como elementos de uma mesma disputa que confronta a lógica de produção do espaço urbano nas cidades brasileiras, calcada na segregação sócio-espacial e na separação dos espaços domésticos e de trabalho. Essa estrutura é responsável pelo movimento pendular ao qual se submetem as classes populares, que representa o grande desafio para as propostas de planejamento urbano em São Paulo, e que se coloca como uma das grandes diretrizes do último Plano Diretor Estratégico da cidade (2014).

Diante deste quadro, e a partir de um levantamento prévio de edifícios ocupados, ociosos e reabilitados, selecionamos a Ocupação Mauá como estudo de caso das condições das ocupações no Centro de São Paulo. Essa escolha se deu pelas características específicas identificadas na ocupação (composta por três entidades distintas, entre outras), de sua implantação no território (tanto em relação à cidade, quanto em relação à quadra e entorno imediato), e o fato de localizar-se em um território (Luz) em iminência de transformação a partir de planos e projetos público-privados, parte deles já em execução, como o Projeto da Nova Luz.

Compreendemos que a condição atual da edificação e de sua ocupação devem informar a proposição futura. Dentro disso, a leitura das diversas composições familiares que orientam a disposição das unidades e dos espaços comuns, assim como, o entendimento das dinâmicas coletivas como grande virtude a ser reiterada, nortearão o processo de projeto.

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Projeto

O projeto de reforma construído ao longo do semestre tem como premissa dotar o espaço construído de melhores condições de habitabilidade, explorando as contradições entre a condição provisória-transitória (em relação à forma como movimento e poder público encaram estes locais) e a permanência duradoura do contingente populacional no local – condição real observada. Diante disso, o projeto vai em um sentido distinto da transformação da ocupação em edifício de habitação social tradicional, tentando responder a uma condição específica que exige respostas alternativas para viabilizar a permanência das famílias no Centro.

As estratégias desenvolvidas pelo grupo exploram a condição de bem-de-uso da moradia e sua não-inserção na lógica da propriedade privada, visando a manutenção de relações de troca e a coletivização de espaços no edifício. Também, são pensadas como um processo de transformação gradual (em fases) de modo à manter a população residente ao longo do processo. Num primeiro momento foi pensada uma organização dos espaços existentes de acordo com o modelo de ocupação atual, com ações centradas no interior dos “espaços” (unidades habitacionais de aproximadamente 12m2). Essa ação se desdobra na sequência em uma reorganização e redistribuição das famílias nos espaços, propondo uma articulação de algumas das unidades para comportar as famílias maiores, ainda que mantendo a modulação atual do edifício. A terceira fase de intervenção, apresentada como projeto final, diz respeito a uma reestruturação mais geral do lote – centrada na transformação infraestrutural do edifício atual, com foco na circulação vertical e na disposição dos núcleos hidráulicos; além da proposição de construção de um novo volume, que permite a transformação dos espaços do edifício atual mantendo a alta densidade populacional coerente à situação observada. Esta ação se justifica pela constatação de que construir mais no interior do lote já é uma estratégia utilizada pelos movimentos em ocupações e se dá, na Mauá, de maneira desorganizada e desamparada em termos técnicos.

Ações no Edifício atual:

Reorganização geral do térreo de acordo com o programa atual, mas também incluindo novos usos como creche e bicicletário atendendo à demandas internas dos movimentos. Dentro dessa ação, visamos uma liberação da área do pátio central (atualmente parcialmente ocupado) e a articulação com o pátio posterior a partir da valorização do palco existente. Criação de área de pilotis no térreo que garante melhor circulação de ar e iluminação e maior articulação com a rua e o entorno, reiterada pela criação de um eixo que liga visualmente a entrada no edifício (controlada por portaria) ao fundo do lote.

Redistribuição dos espaços habitacionais rompendo com a lógica de um espaço padrão (12m2) para diferentes composições familiares, promovendo melhor equalização de área por indivíduo.

Requalificação dos espaços-habitações propondo layouts que sugerem maior independência dos programas internos das unidades e que contribuem para uma dinâmicas mais independentes dentro da organização familiar

Criação de quatro novos núcleos hidráulicos verticais que atendem aos espaços habitacionais do bloco construído a partir de uma setorização da planta. Desse modo, a demanda por banheiros é diluída e também o fluxo interno nos pavimentos. Dentro dessa ação, os espaços para famílias mais numerosas (5-6 pessoas) recebem banheiros privados.

Criação de um novo núcleo de circulação vertical no bloco como forma de reforçar a intensão de diluir os fluxos nos estreitos corredores. Aliado a isso também são propostas aberturas zenitais em áreas inutilizadas do pavimento, de modo a promover melhor qualidade de iluminação e ventilação nas áreas comuns.

Ampliação das aberturas das unidades nas fachadas internas e externas, melhorando a qualidade de ventilação e iluminação nos espaços privados.

Implementação de elementos que reorientam e qualificam a entrada de luz natural na fachada posterior (sul) do edifício existente, além de promover um ganho de área útil aos espaços. Ação esta que se dá a partir do uso de peças pré-fabricadas industrialmente (perfis metálicos, divisórias e pisos leves), anexadas (por engaste) à estrutura atual.

Construção de novo volume:

Construção de um novo volume no fundo do lote, ocupado atualmente por unidades precárias autoconstruídas, no intuito de requalificar a condição do pátio posterior e compensar, em termos de unidades habitacionais e espaços coletivos, as transformações no bloco atual.

Utilização de sistema construtivo modular, com peças pré-moldadas em argamassa armada (possivelmente moldadas in loco por sistema de mutirão), que permite a racionalização da obra e a possibilidade de uma execução gradual.

Criação de conexões por passarelas entre os blocos nos pavimentos dotados de espaços de programa coletivo (lavanderia, escritórios dos movimentos e área de lazer), e um novo núcleo de circulação independente – voltado exclusivamente ao novo bloco.

Bibliografia

BOULOS Guilherme, Entrevista na revista As alternativas habitacionais dos movimentos sociais, Studio X Rio + Columbia GSAPP, 2017

HARVEY David, O trabalho, o capital, e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas cidades capitalistas avançadas, 1982