1ª Etapa
Define-se preexistência como existência anterior. Porém, caracterizar uma preexistência somente em função de seu valor passado omite a ideia de que o que preexiste é também o que se transforma. Uma preexistência pode ser entendida, desta maneira, como uma interlocução entre o passado e as inúmeras possibilidades de futuro. Assim, o que preexiste não é só condicionado ao que foi, mas é também potência para o que virá.
Ao se falar em cidade, preexistências ganham corpo e temporalidade. De um lado mais evidente pela sua materialidade, mas também pelo seu uso ou prática, o espaço urbano acumula dimensões visíveis e invisíveis, materiais e imateriais de preexistência que compõem um imaginário coletivo e se estabelecem na memória dos cidadãos. Assim, verifica-se a relação próxima entre preexistência e o espaço compartilhado, entendendo a memória urbana como uma construção do coletivo.
Para a escolha de um espaço de ação, buscamos regiões na cidade de São Paulo em iminente processo de transformação, porém com uma intensa história e vida cultural que articulassem de maneira particular preexistências materiais e imateriais. Seria na intersecção entre imaginário social e transformação urbana que o trabalho se desenvolveria. Interessa-nos identificar lógicas urbanas preexistentes e assim imaginar adições, subtrações, sobreposições que as potencializem ou que as deturpem. Trata-se de questionar tanto um enrijecimento do passado quanto seu esquecimento no futuro.
E assim escolhemos o Bixiga. Localizado na região central da cidade, o bairro tem fortes raízes culturais que transcendem seu limite geográfico mantendo sua tradição de origem ligada à imigração italiana, e dialogando-a com uma pluralidade de usos e práticas que se sobrepuseram ao longo do tempo. O samba e o teatro são outras duas atividades de grande peso: O samba com a presença da sede da escola de samba Vai Vai que historicamente se apropria da rua para conduzir seus ensaios, e que faz valer a letra de Geraldo Filme “Quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga praver”; E o teatro, com uma série de espaços de espetáculo que começam a surgir no começo do século XX, e que hoje ganha nome com o teatro oficina.
Por se localizar em um grande eixo de transformação urbana com a chegada do metrô, e também com o incentivo público para o investimento privado em obras nas regiões pouco adensadas do bairro, o Bixiga passa atualmente por um processo de mudança. É a partir da sobreposição das camadas geradas pelos polos de preservação na região e pelos eixos de transformação que questionaremos o desenho urbano proposto, entendendo suas particularidades.
Ao analisar o bairro do Bixiga, observamos três lógicas preexistentes como possíveis frentes de trabalho por articularem arquitetura, território e cultura:
TOPOGRAFIA _
A topografia acidentada constitui uma parte alta e uma parte baixa do bairro, gerando espaços de transição de uma a outra. A escadaria do Bixiga, construída com intuito de servir de passagem, é hoje utilizada como palco e dispositivo de lazer e encontro.
EVENTOS _
No bairro, a Rua é caracterizado pelos eventos que nela ocorrem. De feiras de fim de semana até a tradicional Festa de Nossa Senhora Achiropita que acontece durante todo mês de Agosto, articulando cultura e memória no espaço público. A Rua no Bixiga é um lugar de encontro de extrema efervescência.
FRONTEIRAS _
Por estar em uma região central da cidade, observa-se o contato de tipologias de bairro de menor escala com grandes equipamentos de infraestrutura metropolitanos. Esse contraste gera, em sua maioria, uma opressão seja física ou sensível por parte dos sistemas de grande escala funcionando como barreiras na região. Ex: Viaduto Radial Leste, Av. Nove de Julho.
2ª Etapa
“As escolas de samba, mais do que produtoras de desfiles de carnaval, são verdadeiros nós de uma rede de indivíduos, famílias e instituições ligadas à tradição religiosa, cultural e social afro-brasileira.” Raquel Rolnik
No Bixiga, a escola de samba Vai-Vai exemplifica as características descritas por Rolnik ao ser um agente de produção de cultura e identidade que qualifica o bairro (território) e sua comunidade. Não é ao acaso que sua localização seja preservada desde sua origem. A sede da escola de samba se insere na região do antigo quilombo Saracura, símbolo territorial da resistência negra na época de escravidão, papel que as escolas de samba ocupam na atualidade por meio da música, dos eventos, e da visibilidade da cultura negra em uma sociedade em que se predomina a segregação e exclusão.
A questão territorial, portanto, passou de conjuntura a estrutura do que é essencialmente a escola de samba Vai-Vai. Para Rolnik, “A quadra da Vai-Vai é a presença da territorialidade negra na cidade”.
Enquanto isso, o crescimento não para…
A linha laranja do metro, idealizada em sua expansão, tem uma estação prevista para o Baixo Bixiga, mais especificamente a região da praça 14 Bis, e ainda mais ocupando os dois terrenos onde estão os galpões da Vai-Vai. Não se questiona a qualidade positiva da linha metroviária na cidade, porém a lógica puramente funcionalista de sua idealização corre o risco de passar por cima de importantes centros de produção cultural e identidade, e exemplos disso na história da cidade não faltam.
A repetição da história é algo inevitável enquanto não se há crítica, resistência, diálogo e memória. Assim, vimos a necessidade de conscientizar a população da cidade como um todo e problematizar as políticas públicas de desenvolvimento que não demonstram atenção à memória material e imaterial. O intuito seria sensibilizar as pessoas para essa questão que abrange a cidade de forma recorrente e autoritária expondo o caso específico do Vai-Vai no Bixiga, a partir de sua complexidade e particularidade.
Assim, faremos uma intervenção no solo do Bixiga durante uma festa tradicional por entendermos que o território e o bem imaterial estão intrinsecamente associados principalmente no Vai-Vai. É a partir do território que se cria uma identidade e uma cultura, portanto, essa festa não poderia acontecer em lugar nenhum. A importância do território é também expressa nas relações culturais que se estabelecem no bairro, como espaço de encontro entre o samba e história negra, cultura italiana e religião, de onde a região ganha sua característica.
“O território é a base primeira de qualquer identidade cultural. A partir dele constroem-se referentes simbólicos e relatos históricos que permitem um grupo humano compartilhar as mesmas tradições e expressões culturais.” J. Urrutia, 2009
Como arquitetos e urbanistas, entendemos que a cidade é uma continua expressão de valores e práticas que resultam dos desejos dos cidadãos. Nosso objetivo com esse projeto é tomar uma posição ativa para visibilizar o desejo e valores de cidadãos cuja a maneira de viver, se expressar e usar a cidade é constantemente ameaçada em nome do progresso. Assim, nosso ideal de cidade está na horizontalidade entre desenvolvimento, identidade e memória.
A partir do registro da intervenção proposta pretendemos realizar um documentário com o intuito de dar visibilidade para essa questão e para que consigamos manter essa territorialidade negra tão importante. E se isso não for possível, este servirá como uma nova memória.
“A memória como construção, é formação de imagem necessária para os processos de construção e reforço da identidade individual, coletiva e nacional” Meneses, 1992
3ª Etapa
Neste semestre, nos propusemos a ir de encontro com as realidades do bairro do Bixiga de formas variadas. O trabalho elaborado para esta entrega é uma consequência das pesquisas, observações e vivências que tivemos no bairro, com objetivo de apontar e dialogar as potências e contradições existentes no território. Nossa postura de trabalho não se limitou à proposta ou a uma atitude ativa perante o espaço estudado. Mais do que isso, observamos as (pre)existências em suas totalidades e complexidades, dialogando simultaneamente a construção do território e das práticas atuais com a memória e história das culturas ali presentes. Essa metodologia de pesquisa possibilitou respostas que olham não só o espaço urbano objetivo, mas também para o “universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos é entendido aqui como parte da realidade social” (Minayo, 1993).
A partir de nossa primeira visita ao bairro, percebemos que seria insuficiente o trabalho em ateliê distante do cotidiano e vivência do Bixiga. O bairro não é só território de encontro das culturas negra, italiana, católica e paulistana; ele é um agente de produção de cultura própria, continuamente se reinventando e se atualizando, impossível de se apreender por meio de uma pesquisa distanciada.
” Não podemos, no entanto, adaptar nosso objeto de estudo a um método específico, escolhido pelo fato de ser mais aceito ou mais fácil de ser seguido. É o método de pesquisa que deve se adaptar, de acordo com as características do objeto que é pesquisado, dentro do contexto teórico com o qual o objeto é focado” Calil e Arruda, 2004
Ao tratar do espaço e das práticas nele ocorridas, nos inserimos na justaposição de tempos, culturas, realidades, entendendo o papel do território e do presente de articular e revelar essa multiplicidade. Percebemos a história e a memória de forma atual, sem medir a passagem de tempo como distanciamento, mas na sua possibilidade de atualização e conexão. Desta forma, a experiência do grupo no espaço passou a ser uma importante parte do trabalho, base da qual construimos nosso olhar crítico sobre o bairro, e a partir da onde procuramos intervir. O registro dessa vivência é feita por meio audiovisual e sobre o papel, espaço de encontro das realidades do bairro com as nossas.
“ Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entreluza sua trama. “ M. Foucault, “Outros espaços”
As proposições que se desenrolaram a partir disso visam pensar nas transformações inerentes ao crescimento da cidade, e como fazer esse crescimento em diálogo com o que (pre)existe no bairro.
Com a mudança da localização da estação 14 bis da linha laranja do metrô, a sua chegada para as proximidades da Escola de Samba Vai-Vai deixou de ser uma questão imediata, já que a Vai-Vai não sairá de sua sede no Bixiga. Entretanto, sabendo das transformações decorrentes da chegada de uma estação de metrô, ficou claro que em um curto período essa região do baixo Bixiga se encontraria diante de uma série modificações, sejam elas físicas como também culturais.
A primeira proposta de intervenção se trata de uma ação no território em frente à sede da Vai-Vai que se espalha pelo bairro. Entendendo a importância do território para a construção de identidade, faremos uma intervenção no solo do Bixiga durante uma festa tradicional por entendermos que o território e o bem imaterial estão intrinsecamente associados principalmente naquele espaço. É a partir do território que se cultiva uma identidade e uma cultura, portanto, essa festa não poderia acontecer em lugar nenhum.
A segunda intervenção é um projeto para o palco da Vai-Vai. Buscamos projetar o palco a partir das relações urbanas que ele possibilita, enxergando ele como uma potencial centralidade. A ação sobre o palco visa transpor o caráter cultural múltiplo e complexo do Vai-Vai para o espaço físico, desta forma expandindo seu o alcance para o espaço público urbano.
4ª Etapa
Neste semestre, nos propusemos a ir de encontro com as realidades do bairro do Bixiga de formas variadas. O trabalho elaborado é um resultado das pesquisas, observações e vivências que tivemos no bairro, com objetivo de apontar e dialogar as potências e contradições existentes no território. Nossa postura de trabalho não se limitou à proposta ou a uma atitude ativa perante o espaço estudado. Mais do que isso, observamos as (pre)existências em suas totalidades e complexidades, dialogando simultaneamente a construção do território e das práticas atuais com a memória e história das culturas ali presentes. Essa metodologia de pesquisa possibilitou respostas que olham não só o espaço urbano objetivo, mas também para o “universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos é entendido aqui como parte da realidade social” (Minayo, 1993).
A partir de nossa primeira visita ao bairro, percebemos que seria insuficiente o trabalho em ateliê distante do cotidiano e vivência do Bixiga. O bairro não é só território de encontro das culturas negra, italiana, católica e paulistana; ele é um agente de produção de cultura própria, continuamente se reinventando e se atualizando, impossível de se apreender por meio de uma pesquisa distanciada.
Ao tratar do espaço e das práticas nele ocorridas, nos inserimos na justaposição de tempos, culturas, realidades, entendendo o papel do território de articular e revelar essa multiplicidade. Percebemos a história e a memória de forma atual, sem medir a passagem de tempo como distanciamento, mas na sua possibilidade de atualização e conexão. Desta forma, a experiência do grupo no espaço passou a ser uma importante parte do trabalho, base da qual construimos nosso olhar crítico sobre o bairro, e a partir da onde procuramos intervir.
“ Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entreluza sua trama. “
M. Foucault, “Outros espaços”
O diálogo constante com as realidades do território provocou diversas mudanças de foco no trabalho, uma vez que se entrava em contato com circunstâncias fluidas e mutáveis. De início, o olhar recaiu sobre a quadra da Vai-Vai, ameaçada pela chegada da linha laranja do metrô, uma temática recorrente na relação entre equipamentos funcionais e culturais na cidade de São Paulo. Nos sensibilizou a proximidade de um discurso funcionalista, que na atualidade é amplamente questionado por sua característica alienada às preexistências, à história e à memória, principalmente em um território de grande produção e valor cultural.
As descobertas que seguiram não só comprovavam nossa hipótese sobre a importância da presença da Vai-Vai no Bixiga, mas nos revelaram seu papel socio-cultural que vai além dos ensaios de carnaval. De acordo co Raquel Rolnik “As escolas de samba, mais do que produtoras de desfiles de carnaval, são verdadeiros nós de uma rede de indivíduos, famílias e instituições ligadas à tradição religiosa, cultural e social afro-brasileira.”. Era, assim, insustentável a saída da Vai-Vai do Bixiga, entendendo o forte papel que o território tem em amarrar essas relações em rede e cultivar práticas e apropriações. Os projetos pensados a partir de então tinham como objetivo fortalecer e evidenciar a relação entre a Vai-Vai e o seu local de implantação, com intuito de difundir a escola de samba como potência cultural articuladora no bairro.
O palco da escola de samba se mostrou como uma oportunidade de projeto e foi a aproximação final do trabalho. Local de apresentação dos grandes ensaios de carnaval que ocupam a rua semanalmente no Bixiga, o palco é também um símbolo da Vai-Vai no bairro: o letreiro faz reverberar a presença da Vai-Vai no território, mesmo quando não está em uso, e faz cenário para os grandes eventos e comemorações que ocorrem.
O projeto que se desenvolveu pretende aumentar o alcance e diversificar as possibilidades de uso do palco, estabelecendo relações diretas com a rua e o terreno onde configurava seu fundo. O equipamento abre o terreno fechado e encontra as duas cotas de rua, com desnível de 4m, pensando na sua transposição, mas também na expansão do palco até a cota mais alta. Imaginou-se um equipamento que não fosse de uso exclusivo para ensaios, mas que pudesse se flexibilizar para atender atividades diversas, sejam da Vai-Vai ou não.
Você precisa fazer login para comentar.