O ESPAÇO DO COTIDIANO | Grupo 31

Primeira Entrega

Pisando em falso, tropeço em pedras soltas. O amarelo ilumina o concreto tosco, que é defumado por cigarros. Viro-me ao som de rodas no asfalto, que atravancam o trânsito. Subo e desço: mais um buraco. Diante da angustiante esquina escura, sigo. Ventos quentes do metrô baforizam a vertigem daquele subterrâneo que embaça meu espelho. Procuro-me, mas não me encontro. Tento esgueirar-me, pisando em grossas e ásperas raízes.
Um respiro me provoca, a cidade está esparsa. Olho ao redor. Logo sou tragado por um corredor frenético. Esbarro em cheiros de plástico, couro e chocolate, ao som de sussurros e risadas, que se atropelam. Um pandeiro esboça tocar, mas é interrompido pelo odor de xampu de cachorro, que se espraia. Agora percebo que, este tempo todo, fui observado por gigantes câmeras, todas suspensas sobre mim.
Sob a luz branca da cozinha, ressoa o eco do antigo rádio de pilha, buzinando propagandas. Passos inquietos ao fundo marcam o ritmo do melodioso lixar da parede. Amplas escadas levam ao teatro, que atua como uma luminária. Mordo o oleoso vapor do pastel, que trafega no ar sem pudor, infestando as barracas com o cheiro de queijo. Eu o acompanho. Olhares apáticos me tiram o fôlego. Sou levado por uma brisa fresca, que entra pela janela e me lança numa roda de sertanejo, na qual danço com carros, bueiros e ônibus.
Acompanho com os olhos os ladrilhos do piso, dispostos de maneira circular, quando sou tomado por uma tontura, que é agravada com o piscar frenético das luzes. Desvio, virando à Direita. Sons de chaves abrem fachadas. Uma luz verde cobre a rua com uma sensualidade estranha, que ressalta o sabor absurdamente doce do caramelo. Minhas mãos acariciam os vários tecidos pendurados.
Deslizo com o jato de água que corre pela rua inclinada e me apoio no azulejo frio. Arrepio. Raspo na mureta. Observo aquela profusão de merda, mijo e bolos de papel.
No canto do olho percebo uma sutileza, há algo de diferente.

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Segunda Entrega

A cidade constrói, sobrepõe e abandona. As cicatrizes desse processo se mostram em vazios, sejam espaciais, sejam de vivencias.

Utilizando esses vazios, o trabalho pretende projetar ruinas de cotidianos, a partir de duas histórias que constroem memórias para espaços reais, hoje abandonados no centro de São Paulo.

Tanto o Hotel Aquarius (1979), quanto o Cine Ipiranga (1943), foram em sua época projetos de uma São Paulo hoje sobreposta. Abandonados na mesma quadra do centro novo da cidade, foram e deixaram de ser, espaços de diversos cotidianos.

O Hotel Aquarius nunca foi hotel, conheceu sua sina de abandono assim que morreu seu proprietário, antes mesmo da inauguração. Mas logo ganhou posto de “ocupação” e protagonismo na luta de diversos movimentos sem teto.

O Cine Ipiranga, projetado por Rino Levy, teve história diferente. O segundo grande cinema da capital, viveu seus anos de glória desde que nasceu, até 2005, quando foi abandonado.

Uma passagem revela esses abandonos à cidade que os formou; e a partir do vazio no centro da quadra, conecta os cotidianos construídos.

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Terceira Entrega

Os tempos se sobrepõem, ignoram-se. O desejo de atravessar ruínas vem da necessidade de expor a frustrante realidade dos edifícios abandonados no centro de São Paulo. 

O local de intervenção está na quadra do cruzamento das avenidas Ipiranga e São João. Em uma das regiões que fazia parte de um projeto de cidade suntuosa. Os prédios a serem atravessados são o Hotel Aquarius cujo projeto nunca foi finalizado e no qual ficava o Cine Ritz e e o cine Ipiranga.

Atualmente, o cine Ritz funciona como um estacionamento de carros, localizado no coração dessa quadra. Este local foi portanto, escolhido como ponto estratégico de conexão entre os dois edifícios.

Ligação esta que abrigará um objeto cujo papel é refletir a realidade que circunda os dois edifícios. Mostrará, ao ser observado, o constante erro psicótico que bloqueia a possibilidade de uso de edifícios abandonados na cidade ao passo que, concomitantemente, apaga sua memória. Tudo isso, em nome do lucro.

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Quarta Entrega

 

Nessa primeira década do século XX, São Paulo vivia uma urbanização acelerada e inspirada nos moldes da modernização europeia. A cidade se expandia para além do triângulo histórico e o hoje chamado “centro novo” surgiu com a mesma suntuosidade que tomava a área urbana inicial.

Paralelamente, a indústria cinematográfica também crescia; e o auge dos luxuosos cinemas da capital paulista se deu entre os anos 1920 e 1950, décadas muito movimentadas na história de São Paulo: o crescimento urbano vindo do impulso industrial dos anos 1920 e a forte verticalização na década seguinte, fortaleceram o caráter de capital moderna que a cidade tomava.

É nesse contexto que surgem os cinemas Cine Ipiranga e Cine Ritz, ambos inaugurados em 1943, na Cinelândia Paulista, como ficou conhecida a área central da cidade, entre o largo do Paissandú e a Avenida Duque de Caixias. Entre as décadas de 1940 e 1960, a Cinelândia chegou a reunir mais de 20 salas de cinema, muitas grandiosas e cuja arquitetura refletia a atmosfera dos filmes hollywoodianos que dominavam o mercado brasileiro.

“Fachadas imponentes introduzem ambientes suntuosos, decorados com mármores, lustres, espelhos e tapetes. Nesses palácios do sonho, um ritual antecede a apresentação do espetáculo cinematográfico e reforça o clima de sedução: soa o gongo, a sala escurece lentamente e as cortinas se abrem. O filme complementa o espetáculo que começa na arquitetura do cinema.”

(Um resumo da trajetória das salas de cinema na cidade de São Paulo, pág.1)

Dentre os principais cinemas desse período se destacam: na Avenida Ipiranga, os cines Marabá e Ipiranga; na Avenida São João, cines Olido, Metro, Regina, Paratodos, Jussara, Opera, Art Palácio e Ritz/Rivoli; na Praça Ramos de Azevedo, cine Marrocos; na Praça da República, o cine República; na Rua Barão de Itapetininga, o cine Barão e no Largo do Paissandu, os cines Bandeirantes e Paissandu.

Tanto as salas de cinema quanto o centro da cidade, viviam, então, seus anos de glória; mas, a dura lógica do capital foi aos poucos se impondo sobre ambos, e do mesmo jeito que a centralidade econômica da cidade se deslocou para a Avenida Paulista, os generosos espaços antes dedicados ao cinema, foram substituídos pela televisão ou por salas funcionais, menores e mais abundantes, em galerias e shopping centers.

Como um reflexo da lógica urbana, de constante demolição-reconstrução e abandono, os antigos cinemas suntuosos se tornaram espaços ocos, por vezes preenchidos por usos vazios, como estacionamentos ou por cine-pornôs e igrejas.

Essa realidade extravasa o universo cinematográfico, todo o centro de São Paulo enfrenta o abandono de edifícios levantados na época áurea da região. Estipula-se que além dos espaços subutilizados, ocupados por estacionamentos, pelo menos 90 edifícios da área central se encontram vazios, ao mesmo tempo que a cidade se depara com um déficit de 230 mil moradias[1]. As ocupações de prédios e terrenos abandonados representam a resistência da população que se vê refém dessa realidade. O edifício Aquarius, por exemplo, projetado para ser um hotel, foi abandonado antes de sua inauguração e por muito tempo funcionou como ocupação.

Sejam estruturas nunca finalizadas, sejam edifícios imponentes, grandes cartões-postais, a linha que separa o auge das construções urbanas de sua obsolescência é tênue e regida não por qualquer planejamento, mas pelos interesses políticos e econômicos que movem a cidade.

 

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Construído de 1963 até 1988 com projeto de autoria do escritório Croce Afaflo e Gasparine, o edifício Hotel Aquarius nunca chegou a hospedar ninguém, ficou abandonado mesmo antes de finalizada a obra. O edifício foi ocupado em março de 2014, pelo movimento MSTC. Mais de 220 famílias se organizaram nos 19 andares. No entanto, 6 meses depois, as famílias foram expulsas.

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O cine ipiranga, projeto de Rino Levi, foi inaugurado em 1943 junto com o Hotel Excelsior. Com uma sala de capacidade para 1936 pessoas, o espaço se dividia em uma platéia principal e dois balcões, esses, tinham o preço do ingresso elevado, para acessá-lo era necessário traje completo e era permitido fumar. O cinema foi desativado em 2005 e tombado em 2010, atualmente ele continua vazio e sem uso.

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O lugar que hoje é um estacionamento já foi palco de três cinemas: o primeiro deles foi o Cine Ritz, inaugurado em 1943, com 600 lugares; logo, em 1954, o cinema foi reformado e passou a ser chamado Novo Cine Ritz; enfim, em 1957 foi demolido dando lugar ao Cine Rivoli que tinha capacidade para 800 pessoas. Seu piso de mármore ainda pode ser visto em meio a concretagem que foi feita na platéia para dar vaga aos carros.  O estacionamento, que tem entrada no térreo do Edifício Aquarius, já aluga o espaço há mais de 10 anos.

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Bibliografia:

BARRO, Máximo. AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO. Disponível em: < http://salasdecinemadesp.blogspot.com.br/2009/07/as-primeiras-projecoes-na-cidade-de-sao.html>. Acesso em: 01 dezembro, 2016, às 10h30.

CRUZ, Fernanda. OCUPAÇÕES: SÃO PAULO TEM DÉFICIT DE 230 MIL MORADIAS. 09 set., 2015. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/09/ocupacoes-sao-paulo-tem-deficit-de-230-mil-moradias>. Acesso em: 01 dezembro, 2016, às 20h00.

UM RESUMO DA TRAJETÓRIA DAS SALAS DE CINEMA NA CIDADE DE SÃO PAULO. Texto extraído do periódico Filme Cultura, Embrafilme, nº 47. Agosto, 1986. Disponível em: <http://salasdecinemadesp.blogspot.com.br/2008/02/primeira-sala-de-cinema-de-so-paulo.html>. Acesso em: 01 dezembro, 2016, às 10h30.

SORIANO, Ricardo. ANOS 50, O AUGE DOS CINEMAS NA CAPITAL PAULISTA. Disponível em: <http://salasdecinemadesp.blogspot.com.br/2007/09/anos-50-o-auge-dos-cinemas-em-so-paulo.html>. Acesso em: 01 dezembro, 2016, às 11h00.

[1] Dados retirados de: CRUZ, Fernanda. Ocupações: São Paulo tem déficit de 230 mil moradias, 2015.