ENTREGA 01
Manual
Na disjuntura entre teoria e prática, entre significação e os processos de produção, é possível não só iniciar uma crítica sobre a distância entre o projeto e a realidade concreta da execução mas entender as falhas desse processo. A maneira como se demonstra incapaz de compreender as demandas sociais e ambientais do próprio contexto onde atua.
Em um país onde 85% dos serviços de construção são executados sem qualquer suporte de arquitetos ou engenheiros, o tema da auto-construção e a limitação do projeto em alcançar uma maior parte da população é sempre contemporâneo. A informação mais significativa desse dado é que invariavelmente da participação de profissionais qualificados ou não, a construção brasileira segue; de forma autônoma.
Para compreender esse processo é necessário partir dos elementos que já constituem a cadeia de produção, relocalização e transformação de materiais, invariável da demanda criada pela modernização social que ainda se apresenta precária e incapaz de lidar com o problema na escala em que a pressão urbana vêm se desenvolvendo. Tais elementos são, a princípio, o material e a técnica.
A técnica, marcada pela escassez de serviço qualificado na construção civil em projetos de baixa renda, se encontra paralela à sobreoferta de materiais. A radicalização do consumismo desde a implantação do neoliberalismo nos anos 80, estruturando uma economia de oferta excessiva, foi responsável pela intensificação consumista que aumenta a velocidade de deslocamento de produtos de prateleira e tem como subproduto os mares de lixo.
O lixo pode ser essencialmente compreendido como cultura morta. Como parte da identificação cultural inerente à materialidade de uma sociedade que, ao negar sua própria morfologia em detrimento da aquisição de uma nova ficção estética (complexo marketing-consumo) destitui o significado uma vez atribuído àquele objeto e o condena à uma materialidade vazia e designificada.
Se a leitura humana sobre o valor material é aqui desconsiderada e novos métodos de legibilidade são empregados, como uma leitura objetiva e cientificista, o material é novamente lido na plenitude de suas características químicas, biológicas e físicas. Seu potencial é instaurado novamente baseado em uma plataforma analítica que compreende sua capacidade funcional. Dessa forma, uma tábua plenamente conservada usada como fôrma de concreto que é descartada ainda é, invariavelmente, uma tábua plenamente conservada.
Uma viga de aço ou uma parede de concreto não é nada mais que uma viga de aço ou uma parede de concreto antes de qualquer significação metafísica (ou poética, como radicalização da significação material). A capacidade do material de se tornar um recipiente aberto de significados e afetos emerge então do processo e conhecimento técnico de montagem e reposicionamento.
Esse processo não é recente e talvez tenha como maior exemplar a fonte de Marcel Duchamp. A recontextualização de um mictório é a própria ressignificação do objeto. A mesma linha de pensamento é capaz de estruturar uma nova compreensão sobre potencial material e como a apropriação ou o olhar descompromissado com categorias como “lixo” ou “commodities” é capaz de produzir uma nova dimensão estética que leva em consideração tanto demandas subjetivas como a estruturação de uma materialidade afetiva quanto objetivas como o redesign de cadeias globais de logística e a capacidade de olhar o lixo como um novo estoque de commodities estacionados por uma crise de legibilidade econômica sobre o que são as demandas contemporâneas.
É nesse cenário que buscamos introduzir um novo módulo de habitação coerente com a cultura de excesso material já presente mas que lide com ela através da apropriação e transformação mínima. Um produto que tenha versatilidade programática como espinha dorsal e resposta à demanda fluída, democrática e variável contemporânea. Um módulo que permita um rearranjo livre entre as unidades. O projeto seria sintetizado em um manual, que permitiria o usuário médio compreender os potenciais de materiais adjacentes e suas novas possibilidades de montagem. Uma IKEA open-source que reverte a cadeia logística e permite a especulação do lixo novamente como commodity e, posteriormente, afeto.
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ENTREGA 02
das pulsões constitutivas
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corpus
designa solidez, consistência e concretude; algo que ocupa um lugar, e constitui unidade no tempo e no espaço; portador de pequenas partes: outros corpúsculos.
socius
força externa aos indíviduos, mas tensionada pelos mesmos; regra em suspensão que captura e normatiza comportamentos.
corpus socius
conjunto relacional que concentra um emaranhado de corpos objetuais e humanos, que ora movem, ora são movidos; superfície de inscrição da qual parece emanar toda a produção – síntese de registro.
Considerando a síntese de registro da qual damos o nome de arquitetura, um corpo que se forma a partir de uma pretensão particular, que sempre reativa uma memória latente, cabe perguntarmos-nos: de que modo essas linhas de desejo atravessam a constituição dos artefatos arquitetônicos? Por ora, seria interessante considerar que se o modo de pensar a arquitetura se reflete na capacidade de criar condições para a alocação de uma vontade coletiva, o que testemunhamos no fazer é uma imposição do desejo formal – limpo, asséptico e curado. Na afirmação de uma forma, fica implícito o desejo por outras formas; “novas arcadas, novos corredores, novos modos de viver e de pensar”, segundo Jacques Derrida.
Não cabe a nós contestar a validade do fato arquitetônico: do corpus socius, se montam sedimentos de cidade que se encadeiam, e constituem camadas escamosas e duras. Nessa separação, pode-se ler esse tipo de construção, impressão de uma subjetividade de pretensões totalizantes, como um texto de prazer, emprestando o conceito de Barthes. As obras rígidas e duras, constituem raízes e proporcionam leituras legíveis, fluentes e desimpedidas – “clássicas”. Seria então, um devir da arquitetura, trazer uma problemática do texto da fruição (jouissance) ao ato arquitetônico?
Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.
Roland Barthes
Pensar numa estrutura de jogo é pensar numa capacidade de variação com elementos simples; a formação de uma intertextualidade é maquinada a partir da possibilidade de reconhecimento dos termos por todos os atores de uma rede. O jogo pressupõe um diálogo infinito, que se reconstitui em estados de incessante diferenciação. O agenciamento de diversos tipos de representações acontece a partir de uma regra simples, mas que pode se redobrar em uma obra sempre inacabada. “Subtrair o único da multiplicidade; escrever a n-1″. (DELEUZE e GUATTARI).
A latência passa constituir o lugar no jogo; ao invés do espaço envelopar um tempo sagrado e transcendental, a própria ação temporal dá origem ao espaço. Da relação do corpo com a obra, evoca-se a capacidade de dispor do objeto como um fato auto-referente, que cria territórios existenciais na sua possibilidade de reterritorialização. Suporte; espaço intermediador. Se os corpos montam as estruturas arquitetônicas, por eles também são montados; se a cada momento o indivíduo se reconstitui ao lado, é apenas uma questão de contingência para o mesmo acontecer ao ambiente construído.
O corpo é a potência ativa do ambiente: se há algo oculto que esta condição pode trazer, é a de imaginar a constituição de um outro corpus socius, mutável e volátil, ou seja, uma condição na qual os objetos e os indivíduos entram em caosmose. O elemento mínimo é leve e unidimensional – a proposta consiste de um esquema de encaixes modulados, reconfiguráveis e responsivos, que permitem expansão em diferentes vetores. Se um elemento não define espaço nenhum, a repetição integra espaços 3×3 m, que podem ser conjugados de maneira a desejar. O produto final é um manual de montagem, delegando a ferramenta de escrita para o usuário. Atuar na escrita das regras, abrir as possibilidades do fazer. A peça gráfica vai ser tratada ao longo de todo o semestre, e vai evoluir de acordo com as pesquisas do grupo no sentido de conjugar diversas técnicas constitutivas.
Gênese de uma forma desconhecida, atravessada por intensidades.
ENTREGA 03
O trabalho segue em duas frentes, dois agenciamentos maquínicos.
O primeiro visa responder a atomização dos elementos construtivos, e entender os mesmos tanto a partir da possibilidade do corpo com estes objetos (ou seja, peças que não dependem de um máquinario pesado), quanto desde a capacidade vernacular de produção.
O sistema se engendra baseado em duas operações básicas. Cortes simples que possibilitam os encaixes, ou furos para receber travamentos com pinos. O resultado é um sistema aberto, que se baseia nas descentralização das formas de produção de moradia, sem a perda das qualidades construtivas. Os componentes deixam de ser apenas entidades materiais de uma industrialização centralizada e são aqui encarados como uma série de instruções, com potencial de reprodução ad infitum.
A segunda frente de trabalho tem por objetivo entender, a partir deste sistema, como se organizam os modos de vida dentro da matriz de possibilidades criadas a partir das partes moleculares. Se essas estão sujeitas ao corpo, e por ele são moldadas, pode-se deduzir o mesmo da interface arquitetura-sujeito. Nosso foco aqui é praticar, a partir de situações-chave na produção de habitação na cidade, o ato do exercício arquitetônico.
“Máquinas acopladas a outras máquinas, máquinas produzindo conexões, máquinas passando fluxos.”
Deleuze e Guattari – Anti-Édipo (1972)
ENTREGA 04
A proposta consiste de um esquema de encaixes modulados, reconfiguráveis e responsivos, que permitem expansão em diferentes vetores, dentro de um elemento mínimo. Durante o processo investigativo do grupo, encontrou-se no módulo mínimo de 3x3m a configuração básica de espaços que se adequam conforme o uso. A sobreposição, divisão e interseção desses módulos formam, conforme adequação do corpo, ambientes de usos diversos. O corpo é a potência ativa do ambiente e a configuração do objeto é feita de forma leve e unidimensional. Cada peça criada tem como perfil a fácil fabricação e manipulação. O material base é a madeira. Por seu fácil acesso e infinitas possibilidades de trabalho e encaixe. No desenvolvimento do projeto foram criadas peças estruturais, de vedação, travamento e suporte. Essas peças foram pensadas de forma a simplificar o seu uso e manipulação. A simples replicação das peças é capaz de gerar o módulo mínimo que pode ser usado conforme a necessidade ou intenção. Foram também criados exemplos de usos dos módulos como para residências unifamiliares e unidades de comércio.
O objeto final se apresenta em formato de manual de montagem, delegando a ferramenta de escrita de forma a facilitar a leitura do usuário final, fabricante e construtor da própria unidade. A linguagem do desenho como objeto de representação e ferramenta de acesso à informação é feita de forma simplificada. Atuar na escrita das regras é abrir as possibilidades do fazer e, o alcance à informação pode ser a chave para a construção onde a maior parte do que é feito acontece sem o auxílio de um arquiteto.
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