A CIDADE & A CRIANÇA
criando uma rede entre praça e escola
“A city which overlooks the child’s presence is a poor place.
Its movement will be incomplete and oppressive.
The child cannot rediscover the city
unless the city rediscovers the child.”
Aldo van Eyck
Uma cidade que respeita a criança no espaço público é uma cidade mais humana e democrática. Na busca por ferramentas que tornem a cidade um espaço mais acolhedor à criança, Aldo van Eyck cita como exemplo a tempestade de neve, que transforma toda a cidade em um território mais lento a ser explorado livremente pelas crianças. Com a cidade tomada pelo gelo, os carros reduzem a velocidade, “fazendo com que a criança esteja em toda parte, redescobrindo a cidade, enquanto a cidade, por sua vez, redescobre suas crianças”, mas só até a neve derreter. (EYCK, 2006)
No entanto, como podemos realiza essa transformação de uma maneira mais permanente? Como transformar os espaços livres em lugares mais abertos à presença da criança?
A educação é ferramenta imprescindível e prioritária para enfrentar tais desafios. Ela se faz como elemento estratégico para a modificação do território e reforço da cidade como lugar do encontro e da vida coletiva. Nesse sentido, a cidade precisa ser compreendida como território vivo, permanentemente concebido, reconcebido e produzido pelos sujeitos que a habitam.
“Eu não quero uma cidade infantil,
uma cidade pequena.
Quero uma cidade para todos.
E para estar seguro de que não esquecerei ninguém,
escolho o mais novo.”
– Fracesco Tonucci
Nesse contexto, a educação não mais se restringe apenas ao núcleo de escola e família, a cargo do qual ficou durante muito tempo. Há um movimento para que a educação que seja entendida para além da educação escolar e da formação profissional sob parâmetros econômicos e produtivos.
Forma-se então o conceito de educação integral, que é mais do que simplesmente a educação em tempo integral. Trata-se de uma abordagem em conjunto, que lida simultaneamente com aspectos da Educação Formal (escola), Informal (família) e Não-Formal (associações e organizações civis).
O conceito de educação integral “parte do princípio que, para garantir a educação básica de qualidade, é preciso considerar que a concretude do processo educativo compreende fundamentalmente a relação da aprendizagem das crianças e dos adolescentes com a sua vida e com a vida da comunidade”. (FARIA, 2011)
” A Educação Integral precisa da escola, mas também do seu entorno, da comunidade, do bairro, de toda a cidade. Espaços edificados e espaços livres de edificação. A escola integral precisa das ruas. Ao contrário do que muitos pensam e desejam, não quer tirar as crianças das ruas, mas, sim, dar-lhes a oportunidade e o direito do reencontro.”
– Beatriz Goulart
É a partir da noção de educação integral que se insere a proposta de associar os pátios, enquanto espaços livres escolares, aos demais espaços livres da cidade, as praças, com intuito de formar uma rede de espaços livres conectando a cidade e suas escolas. Nesse cenário ao esforço da escola e da família, somam-se a importância do papel de organizações não-governamentais e da administração pública municipal.
“Acredito que, ao tomar o pátio escolar como lugar emblemático para o entendimento das relações que as crianças e jovens estabelecem com a escola/educação e com a cidade/vida urbana, poderemos avançar na construção de caminhos para a superação da outra indesejada dicotomia […]: a oposição entre a escola e a cidade, onde o que uma ensina a outra desensina, deslegitima. Dicotomia esta que causa certa esquizofrenia, pois cinde os sujeitos escolares em dois, com papéis antagônicos e contraditórios: o de ser aluno e o de ser cidadão.”
– Beatriz Goulart
Assim, portanto, a escola não deve ser um equipamento fechado em si mesmo. Há a necessidade de que esse espaço esteja em diálogo com os demais espaços livres e públicos da cidade; e que a praça não seja apenas o lugar do repouso no contexto urbano, mas que ela possa ser um espaço urbano educativo, que não foge de lidar com o encontro inesperado, conflito e insegurança.
“As crianças pedem, à escola e à cidade,
mais autonomia e mais liberdade.
E seus pais pedem, à escola e à cidade,
mais controle, mais vigilância e mais proteção.”
– Francesco Tonucci
Nesse cenário de aprendizado comunitário, a criança é então o protagonista dessa ação de reapropriação dos espaços livres, ao promover uma expansão de seu território para além dos espaços de segurança, ao mesmo tempo que expõe a força de sua fragilidade. Assim, a cidade é lugar de currículo e formação, e os pátios escolares são espaços também urbanos. Um sistema de espaços educativos coletivos escolares e urbanos, pensados para a formação de um sujeito autônomo.
Portanto, promover a conexão entre esses lugares, e um cenário de interação entre eles, é uma maneira de expandi-los. Um movimento que procura avançar de encontro à redução sistemática que vem ocorrendo de tais espaços livres e públicos, tido como lugares comuns de socialização, troca e convívio; contra um movimento de supressão deles.
“A história dos pátios [escolares] é a da supressão. De uma dupla supressão. Uma que seus tempos-espaços diminuem em tamanho, qualidade e importância, na medida em que a criança avança no sistema educacional (basta comparar o pátio de uma pré-escola com o de um oitavo ano!). E outra, pois ao longo da história da educação os pátios vêm tendo suas áreas progressivamente reduzidas proporcionalmente às áreas construídas na escola.” – Beatriz Goulart
Dando início a esse movimento, os mapas abaixo fazem um levantamento e diagnóstico de praças e escolas, em três distritos no município de São Paulo: Alto de Pinheiros, Campo Limpo e Consolação.
Catálogo de Praças
Apresentação
Referências bibliográficas:
EYCK, Aldo van. Writings. Sun Publishers,The Netherlands, 2006.
FARIA, Ana Beatriz Goulart. “O pátio como ter[ritó]rio [de passagem] entre a escola e a cidade”. In: AZEVEDO, Giselle Arteiro Nielsin et al. O lugar do pátio escola no sistema de espaços livres: uso, forma e apropriação. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU/PROARQ, 2011.
GÓMEZ-GRANELL, Carmen e VILLA, Ignacio. A Cidade como Projeto Educativo. Porto Alegre: Artmed, 2003.
TONUCCI, Francesco. Entrevista: A criança como paradigma de uma cidade para todos. Cidades Educadoras. Disponível em: http://cidadeseducadoras.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/
ETAPA 3
Essa etapa tem como objetivo qualificar o nosso olhar para a infância na contemporaneidade e sua percepção em relação à cidade, através de pesquisa de dados secundários sobre infância, criança e cidade, e um primeiro contato com a cartografia com a participação de crianças, registrado em vídeo, feito na região da Consolação.
Proteção
De certa maneira, o que se vê é uma forte separação entre o mundo infantil do adulto na constituição do ambiente urbano e consequente exclusão das crianças do âmbito público.
“A mobilidade urbana da infância é limitada devido às transformações decorrentes do processo de urbanização – aumento do número de carros, crescimento populacional, aumento da violência, etc. Sendo assim, os espaços públicos são privatizados pela ‘procura infinita de proteção e insaciável aspiração à segurança’.”
_Zygmunt Bauman, Confiança e Medo na Cidade. Relógio d ́água, 2005
“Na cidade dos adultos, estes têm circulação livre pelos espaços urbanos, enquanto que, para as crianças, são construídas cartografias urbanas que delimitam quais são os seus espaços na cidade: os espaços do brincar, com os parques, e os espaços educativos, como a escola.
Assim, os adultos vão configurando a cidade ao seu modo, sem consultar as opiniões, desejos e necessidades das crianças e regulando o tempo de permanência delas na cidade – veloz e efêmero. A cidade vai se construindo de forma a excluir a infância da vida urbana, um direito que será permitido somente quando adultos.”
Nayana Brettas, A cidade (re) criada pelo imaginário e cultura lúdica das crianças, 2009
Conclusões parciais
– o tempo e a distância são muito diferentes para as crianças: os atalhos são bem vindos.
– o olhar da criança para as infraestruturas e equipamentos urbanos é muito diferente: um estorvo para uma adulto pode ser um brinquedo para uma criança.
– pontos de localização estão relacionados às atividades básicas da criança: comer, estudar, divertir-se.
– pontos de localização estão relacionados às atividades básicas da criança: comer, estudar, divertir-se.
a cidade ideal da criança é um parque de diversão. é preciso um filtro para transformar o seu desejo em arquitetura: sim ao lúdico, não ao exclusivamente infantil.
ETAPA 4 – FINAL
“Uma cidade que negligencia a presença da criança é um lugar pobre.
Seu movimento será incompleto e opressivo.
A criança não pode redescobrir a cidade
a não ser que a cidade redescubra a criança.”
Aldo Van Eyck
O crescimento das cidades pós revolução industrial e os decorrentes projetos de planejamento urbano foram, pouco a pouco, expulsando as crianças das ruas. Em meados do século XX, o arquiteto holandês Aldo Van Eyck já se incomodava com a ausência da infância na cidade e dedicou treze anos de trabalho, na prefeitura de Amsterdan, para desenhar cerca de setecentos playgrounds, que passaram a fazer parte do cenário urbano. Parquinhos que serviam não apenas para o lazer das crianças, mas de passagem e estar para adultos e pontos de encontro para famílias.
Se na Europa reconstruída pós guerra a criança tornou-se ausente da vida urbana, na cidade contemporânea o cenário é ainda mais perturbador. Nas grandes metrópoles, como São Paulo, a grande maioria das crianças vive aprisionada nos muros de suas casas, condomínios, escolas, shopping centers e centros de lazer. O seu trânsito na cidade é predominantemente muito rápido, sendo reduzido ao simples deslocamento e confinado dentro do carro ou do transporte público. O caminhar pelas calçadas e ruas e a permanência em espaços livres da cidade é sempre muito limitada, o resultado é que se consolidada na contemporaneidade uma cidade de adultos, na qual estes que têm circulação livre, participam e opinam sobre sua configuração. Já os desejos da criança raramente são ouvidos e sua presença é claramente delimitada aos espaços do brincar, como os parques e os espaços educativos, como as escolas.
Nesse contexto, há uma série de discussões e iniciativas, ao redor do mundo, centradas na busca pelo retorno da criança à cena urbana cotidiana. Um bom exemplo disso é La Cittá dei Bambini, ONG criada pelo psicopedagogo e cartunista italiano Francesco Tonucci. Tonucci aposta na transformação das cidades a partir da presença da criança, pois acredita que uma cidade na qual as crianças participam e têm autonomia para se movimentar é uma cidade mais diversa, mais limpa, mais gentil, mais saudável. Uma cidade que respeita a criança no espaço público é uma cidade mais humana e democrática.
Mas se por um lado Tonucci deixa claro que a motivação da sua iniciativa não é apenas educadora, ela é política, pois uma cidade para a criança é uma cidade para todos, por outro ele reconhece na escola papel fundamental para a reinserção da criança nas ruas, uma vez que o caminho de casa para a escola é o percurso urbano que faz parte do seu cotidiano.
Pensando a cidade como território vivo, permanentemente concebido, reconcebido e produzido pelos sujeitos que a habitam, a cidade precisa da criança para ser uma cidade completa. E a criança precisa da cidade, não apenas para se mover, para brincar ou estudar, mas também para se educar como cidadã. Prova disso é que a formação, promoção e desenvolvimento de crianças e jovens seja prioridade no conceito de Cidade Educadora, fundado em 1990.
“A cidade será educadora quando reconheça, exerça e desenvolva, para além das suas funções tradicionais (económica, social, política e de prestação de serviços), uma função educadora, isto é, quando assuma uma intencionalidade e responsabilidade, cujo objectivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes, a começar pelas crianças e pelos jovens.
O grande desafio do século XXI é investir na educação de cada indivíduo, de maneira que este seja cada vez mais capaz de exprimir, afirmar e desenvolver o seu próprio potencial humano. Potencial feito de individualidade, construtividade, criatividade e “sentido de responsabilidade assim como de um sentido de comunidade – capacidade de diálogo, de confrontação e de solidariedade.
Uma cidade será educadora se oferecer todo o seu potencial de forma generosa, ” deixando-se envolver por todos os seus habitantes e ensinando-os a envolverem-se nela. “
Carta das Cidades Educadoras, Barcelona, 1990
O papel educador da cidade também é reconhecido pela arquiteta e pensadora da arquitetura escolar Beatriz Goulart, que defende a educação integral não reduzida ao tempo de escola, mas ampliada ao espaço da cidade, fundindo o pátio escolar aos espaços livres urbanos.
“Acredito que poderemos avançar na construção de caminhos para a superação da oposição entre a escola e a cidade, onde o que uma ensina a outra desensina, e que cinde os sujeitos em dois, com papéis antagônicos e contraditórios: o de ser aluno e o de ser cidadão… ”A Educação Integral precisa da escola, mas também do seu entorno, da comunidade, do bairro, de toda a cidade. Espaços edificados e espaços livres de edificação. A escola integral precisa das ruas. Ao contrário do que muitos pensam e desejam, não quer tirar as crianças das ruas, mas, sim, dar-lhes a oportunidade e o direito do reencontro.”
Beatriz Goulart
A temática da ausência da criança na cidade contemporânea, analisando suas causas, conteúdos, contradições e efeitos é o foco desse estudo que buscará, junto com os pequenos, encontrar soluções, não idílicas, mas possíveis, para uma melhor mobilidade e maior permanência das crianças na cidade metropolitana de São Paulo.
Analisamos por meios de dinâmicas como a criança se relaciona com os espaços livres da vida urbana cotidiana, do pátio residencial e escolar, à praça, parques e ruas, e como se vê e se sente em trânsito na cidade. Utilizando como objeto o distrito da Consolação, região do centro da cidade com alta densidade demográfica e escolar (32 escolas, sendo 7 públicas e 25 particulares) e uma boa oferta de espaços livres públicos (14 praças). Tivemos contato com crianças de 7 à 12 anos de diferentes classes sociais; aplicamos a dinâmica no colégio Rio Branco, no projeto curumim do Sesc Consolação e na Ocupação José Bonifácio.
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