G44_O complexo do Pacaembu: da concepção à concessão

A partir do reconhecimento do complexo esportivo e estádio do Pacaembu como um espaço democrático, sobretudo quando pensamos em sua função social e educativo de transformação da cidade através do acesso público à equipamentos esportivos, é de grande interesse do grupo pensar as questões contemporâneas que se pretendem transformadoras desse espaço. Isso é, pensar a produção da cidade contemporânea na chave da falência do sistema público e de sua desestatização, vinculada ao aumento do número de concessões de bens públicos à gestão privada. Nesse sentido, o processo aprovado de concessão do Pacaembu – atualmente suspenso pela justiça por pressão da associação do bairro Viva Pacaembu -, se coloca como uma discussão essencial dentro desse tema.

etapa 01

Planta original do Estádio Municipal de São Paulo, publicado no Correio Periódico em 1940

A situação do processo de concessão do Estádio se insere num amplo plano de desestatização promovido pela atual gestão que traz o enfraquecimento dos espaços públicos através de concessões e privatizações como projeto. A concessão do complexo à iniciativa privada, – precisamente ao consorcio patrimônio SP formado pela construtora Progen e pelo fundo de investimentos Savona – promete investimentos em torno de 400 milhões de reais destinados a obras novas e de manutenção das atuais estruturas do complexo e terá um tempo de duração de 55 anos. Além disso, a concessão traz discussões fundamentais sobre o tipo de arquitetura que foi escolhida para se articular ao estado capitalista e a estratégia de concessão enquanto proposta de (re) construção da cidade, ambos representados pela gestão Doria.

Render do projeto vencedor da concessão, de autoria do Consórcio Patrimônio SP, divulgado em 2019

O projeto arquitetônico da proposta aprovada indica mudanças consideráveis para o complexo, tombado em 1994 pelo Condephaat, e consequentemente para o seu entorno. A princípio, o plano é preservar a macroestrutura do complexo original, este inaugurado em 1940 pela prefeitura e reformado posteriormente em 1970, implantado nas encostas do vale do rio Pacaembu composto pelo estádio de futebol, que atualmente também abriga o museu do futebol construído em 2008, e outros equipamentos esportivos.

O plano de mudanças do Pacaembu, se resume a demolição do tobogã – nome dado à plateia que possui os ingressos de menor custo para as partidas de futebol construída junto as plateias na reforma de 1970– e a construção de um prédio de três andares com um grande vão livre no térreo compartilhado com as arquibancadas do estádio.  O projeto também propõe a construção de um subsolo onde haverá cinco andares subterrâneos, pensado para receber atividades que não interfiram na emissão de ruídos na vizinhança, uma vez que uma decisão judicial liminar – da qual a Prefeitura já recorreu – proíbe a realização de shows no estádio. Além das mudanças formais no projeto, um risco da gestão privada seria tornar o Pacaembu um espaço elitizado, uma vez que novas cobranças para utilização do complexo esportivo ou para a apreciação dos jogos de futebol no estádio poderiam afastar pessoas que só frequentam esse espaço por seus valores mais acessíveis ao grande público.

Assim, o grupo acredita que a reflexão sobre o processo de concessão do Pacaembu, é bastante pertinente enquanto trabalho acadêmico e meio de documentação de uma arquitetura que está em processo legal de transformação. Entendemos que um edifício que é patrimônio histórico precise de um olhar cauteloso em suas reformas, mas, ao mesmo tempo, acreditamos que além de patrimônio o Pacaembu também é um espaço público ativo que possui demandas contemporâneas, por vezes, desarticuladas com o que foi pensado originalmente no projeto, como é o caso do recém construído museu do futebol. Mesmo assim, é fundamental que tais reformas convivam harmonicamente com a materialidade do edifício, da mesma forma, que estejam articuladas com o uso público e democrático desse espaço.

etapa 03

O Complexo Esportivo do Pacaembu foi historicamente consolidado como um dos maiores bens públicos de São Paulo, abrigando cotidianamente em seu espaço manifestações políticas, esportivas e culturais. A recém aprovada concessão do complexo (realizada em 7 de fevereiro de 2019) ameaça o uso democrático desse espaço, colocando em questão quais seriam as motivações políticas vinculadas ao plano de desestatização promovido pela prefeitura, uma vez que traz o enfraquecimento dos espaços públicos da cidade como projeto. Tais motivações ficam evidentes nas justificativas de concessão mentirosas contidas no texto do edital, resumidas em três pontos: “ (I) os altos custos para manutenção do Pacaembu (em torno de nove milhões por ano), arcados integralmente pelo Erário; (II) uma utilização aquém de sua capacidade, especialmente após a inauguração de novas praças esportivas na cidade, o que reflete a diminuição das receitas ali captadas; bem como (III) a necessidade de explorar novas formas de uso do Pacaembu, elevando o seu potencial como importante território urbano do Município”A prefeitura alega que os gastos com manutenção do complexo (aproximadamente 740 mil reais/mês) superam o que é arrecadado mensalmente (aproximadamente 264 mil reais/mês) com as partidas de futebol. No entanto, é sabido[1] que cada partida de futebol realizada no estádio do Pacaembu despeja entre 80 mil reais (diurna) e 100 mil reais (noturna) no cofre da prefeitura, o que indica que em média sete partidas de futebol por mês arcariam com o custo mensal com o complexo, que atualmente recebe pelo menos oito partidas de futebol por mês.  Para além das falsas justificativas, o edital de concessão também antecipa quais seriam as mudanças radicais impostas pela gestão privada no Pacaembu, tanto em sua materialidade como em suas possibilidades de uso. O edital autoriza a exploração financeira privada do espaço através da introdução de novos usos desvinculados do estádio e complexo esportivo, como Hotel, Praça Gourmet e Coworking visando sempre o lucro

Edital.

Ordem oficial, aviso, postura, citação etc. que

se prende em local próprio e visível ao público ou se anuncia na imprensa, para

conhecimento geral ou dos interessados.

Público.

Que pertence a todos; comum.

Pensando no discurso apresentado pela prefeitura no edital, o qual reforça a ideia de uma suposta decadência física, funcional e econômica do estádio, somada a ideia de uma transformação radical capaz de solucionar os “problemas” enfrentados pela gestão pública do estádio, o presente trabalho indica criticamente, uma resposta ao avesso do edital e, consequentemente, às justificativas que idealizam a concessão. Dessa forma, entendendo a concessão como ação agressiva ao espaço público, esse trabalho se constitui a partir da noção de uma antítese ao edital, defendendo a transformação de todo o Pacaembu, estádio e complexo esportivo, em um único parque, sempre aberto, completamente público. Assim, o antiedital surge como uma proposta-manifesto, crítica à fragilidade do direito à cidade, sobretudo ao o tipo de espaço urbano escolhido para se articular ao estado capitalista e a estratégia de concessão enquanto proposta de construção da cidade. O antiedital propõe, assim, uma retomada do uso público e democrático da cidade, através de sua extrema exacerbação. Quais espaços têm, hoje, valor para a cidade e para quem a habita?




“Para contrabalançar o consumo do espaço provocado pelo lazer-mercadoria, característico das sociedades de consumo, considera-se necessária a criação de espaços, urbanos ou não, capazes de acolher atividades lúdicas e não programadas, ricas em possibilidades criativas, servindo de palco à iniciativa e invenção espontâneas e aumentando em última análise a lucidez dos cidadãos, sua experimentação e criatividade, a gratificação de desempenho em atividades livres, espontâneas” (WILHEIM, 1976)

A proposta para o perímetro e acessos do Pacaembu é caracterizada pela retirada dos muros de todo o estádio e complexo esportivo e pela abertura de vãos na fachada principal (mantendo, no entanto, o local e função do Museu do Futebol) para livre acesso pelas laterais do estádio. Para área do campo, a proposta se resume na implantação de uma floresta, densa e indômita, criando um contraste radical entre essa grande mata e o uso atual do campo  durante os jogos de futebol. A intenção é que essa floresta seja muito diferente das áreas de lazer verdes distribuídas pelos parques da cidade, uma vez que a mata densa em consonância com a forma oca do estádio criará uma espacialidade que induza a contemplação, reflexão, comportando-se, assim como espetáculo sensorial, o grito das torcidas durante as partidas icônicas de futebol será substituído pelos sons da floresta. As arquibancadas, local da platéia e também a materialidade mais importante para a memória de implantação do estádio, são mantidas na proposta. As torres de luz continuarão iluminando a floresta em noites pontuais. O salão nobre, um dos espaços mais subutilizados do complexo, é revertido em um apiário, ou seja, em uma grande colmeia, fundamental para a posterior polinização de culturas agrícolas.

O tobogã é retirado e a passarela existente que atravessa o vale é mantida e reforçada como infraestrutura urbana, atravessando o parque e conectando as ruas adjacentes ao antigo complexo esportivo. A passarela marca o fim da floresta e dá escala ao vazio resultante desta interrupção. Implantada a cerca de 20 metros do fundo do vale, a passarela tem, neste projeto, sua materialidade revelada e seu uso renovado.

A construção do estádio e do complexo esportivo ocultou, como muitas obras de infraestrutura na cidade, um caminho d´água. O projeto do parque pacaembu revela parte do córrego pacaembu e o exalta como elemento de continuidade da proposta. Esta água é utilizada no reservatório de vitórias-régias, e atravessa todo o complexo em um eixo fino e tortuoso, até por fim acumular-se no piscinão da Charles Muller, completamente descoberto para uso público e intermitente.

A proposta para o complexo esportivo se resume em intervenções pontuais na materialidade e programa dos três grandes edifícios: ginásio, quadra de tênis e piscina. O ginásio poliesportivo teria suas telhas substituídas por uma rede vazada, sua quadra ocupada por vegetação e, por fim, assumindo o uso de aviário do complexo. A quadra de tênis dá lugar a uma grande estufa de espécies raras e frágeis, tendo também sua estrutura revelada. A piscina é transformado em um grande reservatória de uma das espécies mais valiosas da Amazônia, a vitória-régia.

Assim, em momentos de fragilidade democrática, a proposta de abertura total do Pacaembu e sua transformação em parque comporta-se como uma heterotopia, ou seja, como um espaço absolutamente outro, um deslocamento no âmbito físico, lúdico e temporal da cidade, espaço essencialmente público e crítico ao processo esquizofrênico de desestatização que se fortifica diariamente na cidade.