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Habitando a barriga do monstro

Comecemos pelo “fim”

Transformações, invenções, mudanças, ideias, impactos, desastres e genocídios em extensão planetária e profundidade geológica. Chame de Antropoceno, Capitaloceno, “fim do mundo”, ou do que bem entender. O fato é que estamos todas e todos vivendo o desastre do nosso tempo.

A transformação dos humanos em força geológica, e a constatação disso com o problema da nova época do Antropoceno (que se seguiu ao Holoceno, a partir da Revolução Industrial, conforme proposto por Paul Crutzen e Eugene Stoermer), quebra a redoma que ao mesmo tempo nos separava e nos elevava da Natureza sem fim lá fora. 
Imaginava-se que o edifício da modernidade podia se apoiar apenas sobre seu andar térreo, a economia, mas eis que nos esquecemos da fundação, a Terra. Essa estratificação sociocosmológica da modernidade ocidental, a cisão entre Natureza e Cultura, começa a implodir diante de nossos olhos. 
Cá estamos nesse caminho irreversível de certas transformações antrópicas do ambiente parece apenas nos mostrar que a humanidade ela própria é uma catástrofe. O fim, no caso, é o fim do nosso mundo. Como ressoa a célebre frase de Claude Lévi-Strauss, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele” (1955).
Como diria Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (2017), de quem nos baseamos para essa síntese, a humanidade é um evento súbito e devastador na história do planeta, e que desaparecerá muito mais rapidamente que as mudanças suscitadas por ela mesma no regime termodinâmico e no equilíbrio biológico da Terra. 
Como lidar, então, com a notícia dada pelos médicos de que estamos com uma doença gravíssima, com provas radiológicas e outras à mão? Em outras palavras, evocando a célebre ideia de Frederic Jameson, como enfrentar a enorme distância entre nossas capacidades científicas de imaginar o fim do mundo e nossa incapacidade política de sequer imaginar o fim do capitalismo? É a partir dessas questões que entramos nesse semestre e nesse monstro.
Como nos sugere a pensadora feminista Donna Haraway, a quem nos inspirou o título e a proposta como um todo, nós já habitamos a “barriga do monstro”, mas tal constatação não deve ser um impeditivo para imaginarmos um outro desenrolar para esse drama. Isso deveria soar como um alarme em nossas cabeças. Um alarme de emergência ou intervalo e não um de fim de jogo.
Não vamos nos render apenas a visão catastrófica ou escatológica. Nosso trabalho é fazer desse período de incertezas e catástrofes o menor possível. Cultivemos entre nós, de modo imaginativo e criativo, outros mundos por vir, outras formas de existência e de relações e, por que não, outras arquiteturas e outros urbanismos possíveis. Cabe a nós, isto é, a toda a malha de seres terranos, humanos e não humanos, repensar e reinventar esse mundo para que outros possam florescer.
Assim, o mote desse semestre do Estúdio Vertical é uma provocação, de escala planetária se assim quiserem. Ao mesmo tempo, é também um chamado local aos corpos discentes e docentes a projetar narrativas outras, desde a perspectiva da arquitetura e que reúna, ao fim desse semestre, ideias sobre como enfrentar o inevitável, “ideias para adiar o fim do mundo”, como sugere poeticamente o pensador indígena Ailton Krenak (2019). 
Ousemos pensar a partir da e para além da barriga do monstro, reconhecendo nosso lugar, mas não nos deixando ser puramente engolidos e silenciados.
Pensemos em outras técnicas, outras estratégias, outras metáforas e outras narrativas; nos múltiplos reordenamentos possíveis das relações e dos espaços, nos novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, sem esquecer que a metáfora é nossa e que nós próprios somos parte dela e parte de tudo. 
Sigamos para além das manias da sustentabilidade neoliberal, reconhecendo que dentro dessa barriga monstruosa somente as ideias radicais, sejam de pequeníssima ou gigantesca escala, de ordem local ou global, sobreviverão. 
Os habitáculos na barriga do monstro só podem ser projetados desse lugar onde o pensamento livre se alie às nossas subjetividades, se expresse na sua mais ampla vastidão, fluindo por entre os muitos rios da diversidade, insistindo na indignação e respondendo com criatividade e imaginação.
Para guiar nossa jornada, estabelecemos de partida três caminhos, caminhos que são feitos de perguntas, questões, interrogações. Como uma primeira orientação aos viajantes que se encontram nessa espécie de clareira da qual partem com inúmeras trilhas, os grupos devem seguir essas rotas pré-estabelecidos para então procurarem seus próprios rumos. Cada um dos caminhos propõe dois conceitos base, os quais assentam a proposta que elaboramos, mas que podem com liberdade serem recombinados ou reinventados.
O primeiro deles propõe lidarmos com as ideias de continuidade e adaptação.
Como enfrentar as sucessivas, crescentes e drásticas catástrofes de nosso tempo? Como superar as ilusões da salvação pela técnica, sendo esta sinônimo de progresso e progresso capitalista, repensando ao fim a natureza ética de cada técnica? Como a arquitetura, silencioso cúmplice de todo esse processo, pode responder ao problema do “fim do mundo”? Como adaptar-se, transformar-se, resistir e reinventar as relações sociais, espaciais, territoriais, técnicas e tecnológicas de nossa disciplina ao inabalável “fim”?
No segundo caminho, encontram-se à mão os conceitos de resignificação e retomada.
Como imaginar um novo devir a partir das ruínas do capitalismo que já começam a trincar? Como imaginar um novo mundo, e a arquitetura que deverá o acompanhar, dada a ideia que o nosso mundo tal como o conhecemos já acabou? Como lidar com o problema da utopia e da distopia, do fantástico e da ficção, quando o futuro próximo, na escala de alguma décadas, se torna imprevisível, senão inimaginável fora dos quadros da ficção científica? Como ressignificar as estruturas, técnicas ou espaços existentes, prospectando em suas frestas um outro mundo por vir e, assim, um outro modo de se relacionar com a Terra? Como retomar a Terra, assim como as retomadas de terra dos movimentos indígenas, e retorná-la habitável para a experiência humana?
Por fim, no terceiro caminho, alteridade e mediação.
Como a arquitetura pode atravessar as barreiras do excepcionalismo humano que nos cega, e também nos destrói, para repensar a natureza humana como uma relação entre espécies? Como refundar a ideia de cidade ou de território a partir da ideia dos direitos não humanos? Como diz o Cacique Babau Tupinambá, como podemos achar que somos os únicos com direito à terra? Como superar a perda da biodiversidade que assola o planeta para além da monocultura civilizacional? Como o projeto pode mediar e criar novos pactos entre humanos e não humanos, para além da cisão entre Natureza e Cultura e para além do destrutivo mito da superioridade humana?

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