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MÊS 06 – raul

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar (Eclesiastes 3:1-4)

Foi assim que comecei o meu discurso em seu velório; falando sobre o tempo. Tempo eterno foi esse em que ela passou em seu apartamento, praticamente só, dentro de seus pensamentos e ficções. “Tempo de derrubar, e tempo de edificar”.

Sua fixação em contar histórias, que não passavam de meros delírios, a dominou depois que se aposentou como jornalista. Era quase como uma doença, um câncer. Por isso minha insistência em sempre visitá-la quando precisava de algo ou me chamava por motivo algum, como tentativa de sair da sua própria cabeça.

Lembro-me como se fosse ontem, de quando levava condimentos e até caixas de cigarro ao seu apartamento. Certo dia me chamou mais atenção do que os outros; quando ela me convidou a entrar – ela nunca tinha me convidado antes. Ela queria me falar algo, mas estava tão eufórica que pensava mais rápido do que as palavras saíam de sua boca. Tenho vagas memórias dela falando de maneira transtornada, que precisaríamos estar atentos com o que viria acontecer; que algo iria atingir a Terra e nós todos morreríamos. Ela tentou me esclarecer mas suas palavras eram confusas – e o que parecia ter clareado seus pensamentos, para mim, se tornou uma grande neblina.

Ela produzia incansavelmente materiais para comprovar sua teoria. Aos poucos comecei a entender do que se tratava sua conspiração; um meteorito cairia em direção a São Paulo e a cidade teria que ser evacuada; enquanto alguns resolvem ficar, outros, privilegiados, constroem cidades em volta da projeção do astro – os que tinham dinheiro e poder. O resto da história eu aindo preciso estudar melhor.

As inspirações pareciam vir de outro lugar, de outros intelectos; outros olhares que não dela. Nos textos existe uma noção clara do que é cidade para uns e do que é cidade para outros, de que existem duas em uma. O que me instiga é ela ter reproduzido visões de um mundo no qual ela não viveu por trinta anos; foram quatro gêneros textuais dispostos de forma ‘engenhosa’ que apresentam formatos e estruturas claras. A mistura entre realidade e ficção é constante, ora uma narrativa – que me pareceu autobiográfica – ora trechos de ensaios vindos de um futuro distante. Um pout-pourri de entrevistas de toda sua carreira, entrevistas publicadas e notícias deturpadas também faziam parte de sua narrativa. Além da parte literária, também contava com cálculos científicos referentes à queda do tal meteorito e documentos oficiais da polícia com relatos fictícios. Talvez o olhar constante pela janela da sala fosse uma de suas pesquisas, também as imensas pilhas de livros e cadernos que teriam em sua volta. Filmes de catástrofes naturais e outras ficções científicas podem ter sido o começo disso tudo. Ela gostava desses devaneios sobre nossa origem e nosso destino. Da onde viemos e para onde vamos. O futuro e o passado; que sempre foram uma coisa só em sua cabeça, pelo menos desde a cirurgia.

Fazem alguns dias que, limpando seu apartamento, me deparei com todas essas histórias. Nunca soube que ela ainda escrevia. Isso tudo me trouxe uma memória especial; de quando, antes do acidente, víamos um filme sobre um vulcão que entraria em erupção em Guadalupe, uma ilha da França, no Caribe. O cineasta – junto a dois câmeras –  resolveu documentar a evacuação de uma cidade próxima com a esperança de encontrar pessoas que permaneceram ali. Ao longo do filme, a cidade que fora quase toda evacuada sobrevive intacta. Se não me falha a memória, no dvd, em baixo do título, havia um subtítulo que tinha a seguinte frase em alemão:

“Warten auf eine Unausweichliche Katastrophe”
traduzido como: “À Espera de uma Catástrofe Inevitável”

Ao final, o narrador diz que aquelas filmagens se tornaram apenas documentário de uma catástrofe (inevitável) que nunca aconteceu.

Penso que possa ser algum material para se estudar. Ou não, talvez nem preste. Mas ao menos, em sua homenagem, possamos ler parte dele para tentar esclarecer.

MÊS 05 – ficção e realidade

Há na literatura ocidental, narrativas que descrevem sociedades imaginadas para servirem de negação, desdobramento ou correção das que já existem. É o caso das obras de H.G. Wells, Aldous Huxley e George Orwell.Dito isso, nas palavras de Antônio Cândido em entrevista:

“(…) a criação ficcional nos integra, ela passa a ser um componente da nossa visão do mundo, da nossa maneira de ser.
Se ela existe em toda as sociedades, se ela é uma necessidade fundamental, ela é um direito de todo homem.”

As literaturas que transfiguram a realidade transmitem também um sentimento de vida, que em certos momentos podemos até dizer que aparentam uma certa incoerência, e que reproduzem o real justamente por não terem um compromisso em documentá-lo, e sim um compromisso com fantasia alí construída. De tal modo que, se for bem estruturada, ou seja, se tiver uma organização estética regida pelas suas próprias regras, o leitor tem a impressão de estar em contato com realidades vitais e de constantemente fazer conexões com sua própria realidade, ou sua totalidade.

Esse trabalho, através de instrumentos da ficção tenta instigar, por meio a uma inversão de lógica: o direto à cidade, em contra ponto ao direito da cidade de ser habitada. Pretende-se com isso aproximar literatura à arquitetura. Entende-se que a força da palavra escrita e testemunhada é essencial para entender fenômenos e totalidades da vida cotidiana e espaços já naturalizados.

Dentro dessa fantasia, o Estado Brasileiro prevê um meteorito, seu vetor alinha-se a Cidade de São Paulo. Partes da cidade começam a ser evacuadas e o que conhecíamos é completamente transformado.

As diferentes totalidades já mencionadas, em termos práticos, se traduzem em quatro gêneros textuais com estéticas visivelmente distintas; o primeiro seria a “espinha dorsal” de toda a história, uma narrativa em primeira pessoa da protagonista, uma espécie de diário; o segundo, depoimentos de autoridades e entidades que trazem um ponto de vista formulado de maneira quase científica; o terceiro se propõe a institucionalizar tudo aquilo que foi dito por entidades e personagens da história, cria-se então notícias que pontuam e determinam fatos da história contada; e por último, o quarto gênero traz o futuro (próximo e/ou distante) desse universo em forma de ensaios que buscam analisar mais a fundo a memória desse lugar e o que pode ser concluído depois de um tempo, quando uma nova camada se sobrepõe a história.

MÊS 04 – “A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM”

Chego no lugar onde cozinho e logo procuro a chaleira para aquecer a água. Ligo o fogo.Vou me encontrando com a  luz que permea – pela fresta da cortina – esse espaço. 

Aos poucos vou abrindo os olhos e entendendo o que me rodeia. Todo dia é um novo dia – vinte quatro horas de pesquisa agoniante, constante e inconclusa – já faz uns vinte anos. Mas em todos esses anos, todos dias diferentes. Na verdade, fazem dezoito anos que estou sozinha aqui; os outros dois eu não me lembro, mas era diferente, nunca foi tão silencioso. Estou só.
E quero estar só.

A água ferve. Começo a passar o café. O pote de biscoito ao meu lado esquerdo, eu pego o quanto consigo com uma só mão. Vejo – a água passa lentamente pelo pó – como se não tivesse mais nada para fazer. Me sirvo uma caneca e me dirijo à sala; onde a bagunça reina. 

Bagunça não. 

Por que existe uma lógica; 

é uma bagunça organizada. 

Os livros tem seus lugares próprios: livros de receitas estão na pilha perto do pé da mesa mais perto da cozinha, livros que dizem a respeito a arte e fotografia servem como base para a coleção de literatura clássica brasileira. A literatura estrangeira fica mais perto do quarto, me dá um sono que chega a doer as espinhas. Mais perto da lareira, os livros de filosofia, que hoje servem para apoiar aquele cinzeiro – foi meu pai quem me deu quando voltou de Edinburgo. 

Raul não gosta dessas categorizações; acha que é um tanto pernóstico, de que a categorias não classificam os livros mas sim, em ordem inversa; livros transformam, moldam e criam categorias. Sempre argumento que gosto de juntar autores que escrevem temas similares, além de gostar da divisão por gêneros; o que pode parecer preguiçoso, mas os livros são meus. 

Raul lê mais romance estrangeiro, coisa que eu me complico. Alemão eu me perco nas expressões, francês eu tenho dificuldade na pronuncia e espanhol eu leio como italiano. Raul por outro lado, tem família francesa, morou em Hamburgo e é viuvo de Marta, italianassa da Calábria, região do sul da Itália. 

Encontro jogado entre um livro – Investigações Filosóficas – um pedaço de papel, com as pontas já amareladas. A letra é minha, deve ser de alguns anos atrás, não tinha data: 

“… num universo que não se opõe mais obstáculos, que não abriga a energia da alma a se desdobrar nem a se refletir sobre si mesma, o ser coincide (acredita coincidir) inteiramente com a sensação presente. Ele se esquece, uma vez que esquece e renuncia à sua própria história, se descarrega do seu passado, perde o que era nele consciência separada, consciência da separação.
Mas por outro lado ele se afirma, uma vez que a sensação atual aumenta o espaço à medida do seu desejo, uma vez que o mundo exterior se unifica e encontra seu centro no puro gozo do eu. Tudo me atravessa, mas eu atinjo tudo. Eu não sou mais nada, mas eu nego o espaço porque me tornei
o espaço.”

Ele foi sempre quem me ajudou a ler. Lembro-me de quando fazíamos rodas de leitura para ler Deleuze e Derrida quando queríamos entender os corpos imateriais no espaço. D.F. Wallace e Barbara Harisson na época em que pensávamos em virar ensaístas e morar na Itália.

Batem na porta. 

Quem é? Ah, claro. É o Raul. 

Hoje acho que traria cigarro… 

Batem mais uma vez. Não vou abrir,

hoje não. 

Tem dias que que gosto de ficar só. Dias que não… não gosto de pessoas. Prefiro que as coisas se decidam sozinhas, ou em sua matéria, ou em minha cabeça. A luz insiste em adentrar ao espaço ofuscando a luz dos meu olhos, que não estavam mais comigo. Resisto. Mas olho para todas aquelas coisas contidas ali e não encontro mais nelas nenhum canto para repousar, nenhum acolhimento que me fizesse dizer: “é suficiente, “está bem”.

Mas… mas Raul é a boa alma que me mantém viva nesse fundo
do poço. 

Quem nesses tempos imprevisíveis me traz o que necessito para consiga continuar me sentindo parte desse mundo.

Corro dali, abro a porta desse lugar que insisto em chamar de casa, esbarro num vaso de orquídeas que a senhora da porta da frente insiste em deixar ali. Hmmmm… aquele cheiro de baseado que me faz lembrar a adolescência tomou conta de todos os meus pensamentos. Luto para continuar focada em sair dali e encontrar Raul – não lembro a última vez que havia passado por ali – reconheci aquela voz, não era Raul, era  Seu Chico, o porteiro  que só o conhecia pela voz, o vejo pela primeira vez.

MÊS 03

Nas palavras de Antônio Candido:

“Dizia Goethe: o homem entra na literatura e quando sai dela sai mais rico e compreendendo melhor o mundo. Entende melhor. Frequentemente, a pessoa não tem noção disso, porque se passa nas camadas do inconsciente, mas ele lendo, lendo poesia, vendo histórias de fadas quando menino, lendo romances quando grande, aquilo vai se armazenando nele e vai enriquecendo a maneira dele ver. Sem querer, quando ele vê a realidade está vendo as coisas que ele viu na ficção. De maneira que a criação ficcional nos integra, ela passa a ser um componente da nossa visão do mundo, da nossa maneira de ser. Se ela existe em toda as sociedades, se ela é uma necessidade fundamental, ela é um direito de todo homem.”

Parte da relação ambígua que a cidade exerce em seus habitantes, misturando frustrações e fascínios, são provenientes de um ciclo de evolução acelerada, da necessidade insaciável de domar o espaço, estriando-o de modo a controla-lo inteiramente. 

O antropólogo Claude Lévi-Strauss acreditava que as cidades eram o produto de uma estrutura mental invisível, um tipo de ordem subjacente, fora de nosso alcance, que se insinuaria sobre os espaços e se expressaria de forma simbólica ou real. Portanto, a apreensão dessas subjetividades, necessita meios que permitam a divagação, dão margem a caminhos que se apoiam na incerteza, na variável, na possibilidade nômade de explorar e tecer narrativas.